domingo, 8 de junho de 2008

A Bolsa e a Vida
Hamid limpava o fuzil com um pedaço de estopa sem dar muita atenção ao que Ahmad e Karim conversavam em pé nos dois lados da mesa. Ficou ali, sentado no canto da sala, fazendo-se de desinteressado, esfregando o aço e tentando avistar o brilho de seu trabalho sob a frágil luz de 40 watts: detestava aquele ambiente soturno, mas Ahmad garantiu ser melhor para oprimir rebeldes e estrangeiros impafiosos. Só gostava de seu trabalho por causa do opulento traje ocre (embora preferisse o antigo verde-oliva) e de poder ficar sentado por muito tempo sem ser incomodado. Preferia também o turbante ao quepe de lona, que se desequilibrava de sua cabeça suada pelos 35 graus à sombra daqueles dias. Pensava em como seria capturar um passageiro que fugisse com uma mala cheia de drogas: uma mão no quepe, outra no fuzil. Não daria certo. Mas poucas vezes capturaram um traficante nos vôos, porque a pena era dura no Azberiquinistão: uma mão decepada. Nunca viu a sentença ser executada à sua frente, porque só era levada a cabo nos porões da fortaleza de Cabulid, que no passado foi reduto de resistência às forças opressoras do Ashmed, grupo financiado pelo ocidente e ativo opositor ao regime. Hamid não entendia bem o que Ahmad e Karim conversavam, então preferiu abaixar a cabeça e concentrar toda a sua atenção e carinho em seu AR-15. Não levantou-a nem quando Ahmad socou forte a mesa.
- Estou avisando, Karim, é um batom.
- A mulher apontou e disse “manteiga de cacau”. O que é isso?
- Não importa.
- E é branco.
- Karim, lembra de quando aquela norueguesa desembarcou aqui com um batom verde? Ele não era material de desenho, Karim! Não! Ao passar na boca não ficava verde, e sim vermelho!
- Tem certeza?
- Sim.
- E se passarmos este nos lábios para testar?...
Ahmad olhou o colega com desconfiança. Karim se sentiu ameaçado e constrangido.
- Foi só uma idéia.
- Este artefato não deve ser o único. Abra a bolsa.
Karim relutou por meio segundo, tempo suficiente para Ahmad se impacientar com sua hesitação.
- É nossa função, homem. Acostume-se logo com isso.
Apesar de novato, Karim sabia o que custava a insubordinação desde que o regime deixou de ser laico, como também tinha noção de que a operação padrão não pressupunha qualquer discrição ou preservação da privacidade alheia. Deslizou o zíper abrindo um vão misterioso e desafiador na bolsa preta. Colocou a mão lentamente em seu interior, parecendo temer tocar o que não devia, apesar de não ter nem idéia do que poderia encontrar. Tirou um estojo plástico retangular, de cor rosa. Ahmad o interpelou com os olhos, parecendo dizer “abra-o!”. Karim obedeceu em silêncio. Ahmad esticou o pescoço para ver o que havia em seu interior: um sabonete, também de cor rosa.
- Aproxime do nariz.
Karim cheirou-o, fazendo ar de aprovação, o que irritou ainda mais Ahmad.
- As mulheres do ocidente costumam se masturbar com este objeto.
- Mas é só um sabonete.
- É o que parece! Mas elas o usam de outro jeito em duchas e banheiras de motel.
- O que é motel?
- Um lugar com camas, só que as pessoas não dormem.
Karim continuou a apreciar o sabonete em sua mão, parecendo ainda não entender. Ahmad então virou-se, abriu uma gaveta no enferrujado armário de ferro e retirou de dentro dela uma pasta preta, fechada por elásticos. Jogou-a ao lado da bolsa e abriu para o colega, tirando um envelope de seu interior.
- Veja.
Karim deixou o sabonete sobre a mesa, abriu o envelope manchado de gordura e passou a ver fotos de sabonetes em formato de pênis.
- De onde conseguiu isso, Ahmad?
- Temos nossos informantes. Dizem que vendem pela Internet.
- Elas... se lavam com isso no ocidente?
- Não! Elas “usam” isso. É diferente.
- E se tivesse algum propósito de higiene íntima?
Ahmad arrancou com força as fotos das mãos de Karim.
- Karim, elas chegam a fazer chocolates nesses formatos.
- Chocolate é aquele doce marrom?...
- Sim, aquele com substâncias que incitam as mulheres.
- Eu encontrei na bolsa de uma holandesa.
- Confiscou?
- Não. Ela o comeu antes que eu pudesse tomar de suas mãos.
- Pervertida!
- Mas o chocolate tinha formato de palito. Esses que parecem pênis devem ser feitos por prostitutas.
- Não! Sabemos que mulheres normais fazem isso.
- Mulheres que cuidam da casa?
- Sim. Fazem em família. E vendem para pessoas de família.
Karim arregalou os olhos surpreso pela revelação. Ahmad então fez um aceno de cabeça para que continuasse a exploração na bolsa. O colega tirou dela uma caixa de lenços de papel. Pensou em pegar um para enxugar a testa suada, mas temeu ser outro artefato demoníaco.
- Lenços?
- É o que parece. Mas cheire-os.
Mesmo temeroso, Karim aproximou o rosto lentamente e sorveu o aroma. Sentiu a lavanda impregnar suas narinas. Deu de ombros como que sem entender o que poderia haver ali de perigoso.
- São lenços umedecidos. Úmidos. Entendeu?
Karim temia dizer que “não”, mas também não se sentia à vontade para dizer que “sim”.
- São usados na cópula para limpar o sêmen.
- Não seria para assoar o nariz?
Ahmad se impacientou e tomou a caixa das mãos de Karim.
- Faremos um exame de laboratório e você verá. Karim, somos o controle, o filtro do aeroporto de Pakshir. Não nos cabe ser ingênuos. Lembra da vez em que um homossexual quase entrou em nosso país?
Karim balançou a cabeça admitindo recordar.
- Jamais desconfiaríamos, se um dos fiscais não tivesse reparado que ele usava brinco. Continuemos a investigação.
Novamente a mão de Karim se infiltrou na bolsa, retirando dela uma escova de dentes.
- Uma escova de dentes.
- É o que parece.
Karim a olhou de novo, tentando localizar qual componente de sua estrutura poderia ser danoso. Antes que pudesse levar o objeto até o nariz para cheirá-lo, Ahmad o pegou para si, virando-o com as cerdas para baixo e deixando o corpo em riste.
- Entendeu agora?
Karim procurou por Hamid para trocar um olhar de cumplicidade em sua ignorância, mas o colega desviou a atenção para seu AR-15 sem querer se comprometer.
- Karim, é um objeto fálico. Há relatos de mulheres no ocidente flagradas fazendo uso de colheres, garrafas de refrigerante e até de cabos de vassoura. Entendeu agora?
Karim fez que sim com a cabeça.
- Andei sabendo que há até mesmo escovas elétricas. Vibrantes, entendeu?
Ahmad tremeu seu corpo e sacudiu a escova para explicar com maior didatismo ao colega.
- Continue.
Novamente a mão de Karim mergulhou na bolsa, tirando agora um tubo de desodorante.
- Está vendo, Karim? As revelações não param.
Curioso, Karim fez uma inspeção visual no tubo.
- Cuidado! Não aperte.
Karim resolveu manter o silêncio para encobrir sua completa falta de malícia sobre aquele produto.
- Elas se perfumam e nos seduzem com isso. Se você borrifar teremos problemas. Tem uma substância chamada... fedormônico! Isso, fedormônico. Entra por nossas narinas e nos torna tolos, querendo sexo. E nós três aqui, com esse cheiro... não sei, melhor garantir.
Ahmad desviou o olhar do colega, querendo evitar embaraços. Sem esperar nova ordem, Karim voltou a vasculhar o fundo da bolsa com a mão. Tirou desta vez um pacote de absorventes. Ahmad suava sem se saber se era de calor ou de ira.
- Olhe. Parece a cartola do demônio.
- O que é?
- Elas usam para estancar seus sangramentos.
- Os mensais?
- Esses.
- Mas por que não usam panos como nossas mulheres? Isso parece papel.
- Porque esses têm cheiros, e têm florzinhas desenhadas, pegue um.
Karim tirou uma unidade de dentro do pacote. Observou novamente sem entender, segurando o leve artigo de higiene íntima com as pontas dos dedos. O modess balançou como um pêndulo obsceno, apontado pelo dedo delator de Ahmad.
- Elas ficam mais limpas para facilitar o ato. Não se cansam de copular nem nos dias em que a natureza pede trégua.
Para não contrariar, Karim acenou positivamente com a cabeça. Voltou a contemplar o interior da bolsa. Agora, tirou de uma só vez um punhado de objetos: escova de cabelo, colírio, comprimidos para enjôo, embalagem de isopor com metade de um sanduíche, balas e um tubo de creme para as mãos. Ahmad contemplou o conjunto com ar de repulsa.
- Está vendo, Karim? Está vendo?
Karim não tinha como dizer que não. Só não sabia se estava vendo o mesmo que Ahmad.
- Karim, precisamos estar muito atentos. Temos à nossa frente um arsenal, Karim. Um arsenal. Se você soubesse o que elas fazem no ocidente...
- O que fazem?
- Elas vestem botas pretas longas para atiçar a sanha de seus maridos; nadam com as pernas para fora da água, abrindo e fechando, abrindo e fechando, e chamam isso de esporte; passam tanto tempo na Internet que até viram doutoras no assunto.
- Lá a Internet não é proibida para civis?
- Não, Karim. E é liberada até mesmo para mulheres.
Karim ficou tão atento à explanação do colega que quase não se deu conta de que já estava abrindo uma bala tirada da bolsa.
- E não é só, Karim, muitas dizem que são românticas, meigas, carinhosas, amorosas mas não se preservam e quando se casam já estão violadas!
- Mas os maridos as devolvem?
- Não! Não! Elas mandam em tudo. Tem até países com mulheres no poder.
- Quais?
- Na América do Sul. O Chipre. Faz fronteira com o Brasil.
Karim volta a vasculhar a bolsa.
- Ainda tem muito por aqui.
- A mulher tem uma conexão?
- Conexão de vôo?
- Sim.
- Não. Ficará em Pakshir mesmo.
- Então que espere.
- Certo.
- Ei, você me disse que ela veste uma burca.
- Sim, mas não completa. O rosto fica aparecendo.
- Então tem tudo para ser uma pervertida mesmo. Pode até ser uma espiã disfarçando-se como uma de nossas mulheres.
- Pode sim.
- Vamos a nossa missão. Alguém tem de fazer o trabalho sujo.
- Eu vi essa frase em um filme.
- Você anda vendo filmes?!
A dupla se encara e silencia, decidindo cessar diplomaticamente a conversa, já que ambos dispararam sentenças comprometedoras. Voltam-se então à bolsa feminina, continuando a operação que já invadia o horário de almoço de Hamid. Conformado, encostou o fuzil na parede e foi até a caixa de munições, pegar algumas pistolas para lubrificar e assim disfarçar a rebeldia do estômago.
Uma hora depois, Hamid levava a bolsa até sua dona, sentada impaciente no saguão do terminal aeroviário de Pakshir. Depositou o objeto em seu colo e lhe deu as costas para não ter de explicar nada. Mas a mulher queria que lhe dessem alguma satisfação.
- Ei, falo sua língua. Minha bolsa está vazia!
Ahmid parou e virou-se, já a uma distância que lhe exigia falar alto para se fazer entender.
- Não totalmente. Há algo que não confiscamos.
Hamid olhou ao redor para se garantir de que não estava sendo observado.
- Nós não sabemos a língua de seu país, mas eu expliquei a eles que você é uma religiosa.
Irmã Catarina então tirou surpresa de dentro da bolsa seu pequeno livro de capa preta e letras douradas em baixo relevo. Hamid concluiu.
- Então, deduzi que esta é a sua Bíblia.
Sensibilizada, a irmã acariciou a capa dura, parecendo incrédula com o ato. O oficial lhe deu um sorriso, retribuído por outro carinhoso da religiosa. Ao fazer um discreto aceno de despedida, a freira agradecida o fitou e beijou sua edição de bolso com contos do Marquês de Sade.



Mario Lopes

8 comentários:

Anônimo disse...

Depois somos nós, as Desafordas, ou melhor, nós mulheres que temos mente suja. Hehe!
...
Já esta virando lugar comum escrever isso, um recorta e cola, mas vamos lá: - Adorei o texto Mario. Parabéns!
beijos
Verô

Anônimo disse...

Então vai outro copiar ecolar: Thanks, Verô. ;-)
Beijão.

Charlie

Anônimo disse...

olá,
venho mais uma vez parabenizá-lo. excelente texto, achei-o bem diferente dos demais.
a Cá tinha razão ao me falar que este blog vicia. acesso todos os dias. rs
bjs
luciane

Anônimo disse...

Uau, Luciane, fico novamente muito grato. Eu e as Desaforadas estamos muito felizes por você estar sempre aqui prestigiando a gente. Aliás, se quiser participar como Desaforada X, escreva um texto em cima dos nossos temas. Entre na comunidade para saber quais são os próximos:
http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=45102969
Quando uma Desaforada oficial não puder publicar seu texto, você pode entrar em cena. A Cah já foi Desaforada X. Amanhã tem outra Desaforada X publicando texto (amiga minha também de SP). Quem sabe o próximo não é o seu? Se você curte o estilo e o conteúdo, já tem um bom prognóstico para ser uma Desaforada X. ;-)
Beijo, Lu.

Charlie

Anônimo disse...

Ola,
Gostei da ideia da desaforada X, nao disponho de muito tempo pra escrever, mas obrigada pelo convite! Quem sabe!
Nao tenho orkut, é possível alguem me passar os temas por email? Se nao der, peço pra Cazinha me passar.
Falando nisso, quando foi que ela escreveu pro blog??? Qual texto e? Voce tambem a convidou? Ela nao falou nada a respeito.
A proposito, voces tem algum email direto pra contato, crticas, sugestoes, elogios, etc???
Me desculpe pelos erros ortograficos, e que meu teclado esta sem acento!
Bjs
Luciane

Anônimo disse...

O texto da Cah é da quarta da semana passada. Se quiser, posso te mandar os temas por e-mail. Não temos e-mail para críticas, dúvidas, sugestões e etc, mas se quiser me manda suas colocações para o marioaugustolopes@hotmail.com, OK?
Beijo, Luciane.

Charlie

Katia K. disse...

Oi, Mário!
Adorei as figurinhas de vcs aí... E os textos também são ótimos, claro :-)
Beijão!

Anônimo disse...

Katia "Cross", é você?!
Obrigado pelas palavras. Legal ter você lendo o blog. Beijo e mande notícias de seus filmes.

Charlie