sexta-feira, 10 de julho de 2009

Recado


Foi um processo longo, mas nada dramático como costumam romantizar os escritores. Deitada em sua cama, em plena paz, livre de qualquer turbilhão mental, ela decidiu que já estava na hora de ir.
Um pensamento tomou-lhe a mente, e paraseando alguma música que nem ao menos lembrava se a acompanhou durante a infância, ou se apenas a tinha ouvido da boca de alguém, começou a cantar:
- Lá rá lá rá rá, o passarinho criou asas e quer voar!
Riu baixinho. Pela primeira vez, sentiu a liberdade de poder lidar com sua vida. Sentiu a liberdade de uma decisão tomada, cujo caminho era só o de ida.
E assim levantou-se da cama, e resolveu iniciar seu dia, como se tudo fosse permanecer igual. Adorava surpresas.
Colocou suas pantufas, e saiu em direção a cozinha arrastando-as pelo chão de carpê. Serviu-se de uma xícara de café com leite, e sentou no banquinho de madeira. Passou a olhar o patinho do copo em sua mão, e tentou fazer as contas de quantas vezes já havia passado horas a tomar café e pensar em sua vida.
Lembrou também que esses seus devaneios eram vazios, como se ficasse hipnotizada por um tempo; chamava aquilo de ”pensar”, mas sabia que nada mais fazia do que dormir acordada.
Vai ver era esse o motivo de ela passar a maior parte do seu tempo livre deitada em sua cama. Tinha plena consciência de que se ficasse acordada, apenas gastaria mais energia.
Porém, hoje, ela não só acordou mais cedo, como resolveu não ir pra aula.
Lembrou-se da sua segunda promessa do dia, de que não ia fazer nada fora da sua rotina, mas mudou de idéia. Ia se aprontar e seguir seu rumo.
Gostava tanto de surpresas, que surpreender apenas aos outros já não lhe bastava. Passou também a surpreender a si mesma, e ter repentinas mudanças de idéias.
Agora sim, tinha certeza de que já estava decidida.

Ela não teve cuidado ao escolher a sua roupa, nem em arrumar os cabelos ou pintar seus olhos. Queria ser ela mesma pelo menos nesse dia.
Apenas escolheu o sapato. Era sem dúvida, seu sapato mais bonito, todo delicadinho, parecia de boneca!
È claro que ele tinha seu defeito: por ser de plástico, o cheiro que ficava impregnado na sola era...terrível.
Assim como tudo na vida, ela aprendeu a gostar daquela Melissinha mesmo com esse seu defeito. E foi por isso mesmo que escolheu-a para a acompanhar durante sua grande decisão.
Olhou-se no espelho, mais por obrigação do que por interesse. Queria chegar logo a seu destino, e não encontrar ninguém no caminho.
Pegou as chaves de casa, um bloquinho de papel e uma caneta, e lá se foi... feliz da vida.

Pegou o elevador, apertou o botão que as crianças geralmente nunca alcançam... e começou a sentir seu coração acelerar.
O tempo já não passava, a porta não abria.
Os seus pensamentos, antes vazios, agora simplesmente deixaram de existir.
Olhava aquele cubículo cercado de 3 espelhos, -mais a porta que nunca abre -, e queria incorporar-se a aquilo tudo. Via com olhos de cegos.
Com um instalo, saiu de sua auto-hipnose, e sem delongas, foi logo a sacada.
Dessa vez, olhava com olhos de artista. A visão do 15 andar é sempre linda, ainda mais para um espírito preenchido pelo nada.
Ficou pouco tempo a olhar a paisagem, pois por mais bonita que fosse, não a faria mudar de idéia.
Então, resolveu olhar para o chão.
Sentiu aquele frio na barriga, ficou zonza e passou a imaginar como seria voar até a superfície. Voar até o solo, para depois voar para o céu.
Sentiu-se livre, solta... até que veio o medo e o arrependimento. O chão estava ali, a um metro de seus olhos, e ela nem teve tempo de gritar. Não teve tempo nem ao menos de se arrepender.
Mas isso era o que ela imaginava.

Tirou os sapatos, apoiando-se na grade com medo de cair. Mal ela sabia.
Escreveu algumas palavras no bloquinho, e deixou-o junto aos seus calçados.
Com um impulso, subiu no seu pódio, e de lá, jogou-se ao ar, para aprender a voar. E voou.
Horas depois, uma mulher passa no último andar do prédio para fazer a limpeza, e vê um par de sapatos alinhados em frente ao precipício. Junto com eles, a faxineira vê um papelzinho e se aproxima para ler o que está escrito. Lê:

- Desculpe o mau cheiro.

No bairro, ouve-se um grito.


Letícia Mueller

3 comentários:

Anônimo disse...

Renderia um belo roteiro de cinema, hein, Letícia. ;-)
Beijo, Fofulety.

Mario

Anônimo disse...

Mário, o roteiro não só já foi feito, como já foi filmado, e estréia sábado que vem.
hahaha
beijos ;*

Leticia

Unknown disse...

Lindo... adorei cada palavra, frase, repletas de sensibilidade e sutileza.
Beijos!