sexta-feira, 31 de julho de 2009

A Máquina Quase Perfeita


Em pleno Século XXI, criei uma máquina há muito sonhada, cuja estimativa para que fosse criada margeava uma espera de no mínimo dois séculos. Por ser uma invenção estupenda, já tentada pelo homem, era necessário um teste minucioso de seu funcionamento que não deixasse dúvidas sobre a eficácia e anulasse qualquer possibilidade de risco mortal.

Portanto, após meses e meses de estudo, usando ratos como cobaias, e obtendo resultados extremamente satisfatórios, concluí que já estava na hora de eu mesmo embarcar nessa loucura e dar um veredito sobre minha invenção: a máquina do tempo.

Fiz os devidos preparativos, arrumei uma mala com roupas para todas as estações e deixei sobre minha mesa um bilhete tendo como remetente eu mesmo, detalhando o funcionamento da máquina e o dia de minha partida, caso eu voltasse com a memória afetada.

Elaborei um itinerário em ordem cronológica, com início na Grécia clássica, pois ansiava conhecer o berço da Filosofia e quem sabe até eu tivesse a sorte de esbarrar com algum grande pensador, como Sócrates ou Aristóteles. Porém, devo ter cometido algum engano na programação, pois acabei passando três séculos do esperado. Eu estava entre IX e VIII a.C., nos tempos Homéricos. Infelizmente, devido ao meu grandíssimo erro, não pude ir atrás de Homero e Hesíodo, e tive de permanecer lá só o tempo suficiente de ver duas ou três pessoas trajando aquelas túnicas brancas.

Com cautela, regulei a máquina e cheguei ao destino esperado, Atenas. Parei próximo a uma arena onde estava ocorrendo provavelmente um dos primeiros Jogos Olímpicos da história da humanidade.

Após minha primeira vitória, viajei até a Idade Média e tudo ocorreu como o esperado. Passeei por Paris, vi a Catedral de Notre Dame com sua arquitetura gótica e tive o desgosto de passar por um ritual da inquisição. Tratei logo de ir embora, mesmo porque, se alguém ali desconfiasse de mim, o meu destino seria a fogueira.


Assim, fui seguindo com minha viagem, de acordo com as expectativas, sem grandes percalços. Na Idade Moderna, cheguei no exato momento em que Pedro Álvares Cabral ouvia:
- “Terra à vista”, e descobria o Brasil após cruzar o Atlântico.

No Renascimento, vi Thomas Morus escrever as últimas páginas de sua maior obra, Utopia. Na Reforma, presenciei a queima de milhares de livros considerados hereges e, durante o Iluminismo, quase fui atacado por um soldado escocês que invadia a Inglaterra - tratei logo de ir embora antes que começasse a Guerra Civil.

Presenciei alguns minutos da Revolução Francesa, com a Tomada da Bastilha e uma revolta de operários da Revolução Industrial. Não quis passar pela Primeira Guerra Mundial, mas acompanhei alguns estragos da Crise de 1929 nos Estados Unidos. Ouvi um discurso de Hitler e novamente pulei a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria. A máquina funcionava e eu já podia voltar.

Cheguei em casa felicíssimo. Minha invenção, até então, era um sucesso. Após cerca de 100 dias no passado, eu ficaria uma semana descansando, para enfim cumprir o desafio final. Uma máquina do tempo, que além de viajar para o passado, também deveria levar para o futuro, e já passava da hora de eu garantir que isso também era possível com minha “engrenagem”.

Passei a semana imaginando como seria minha viagem, afinal, o passado não era um mistério propriamente dito, pois havia muitos livros relatando-o. Já o futuro só podia ser imaginado. Nada se sabia do que estava por vir e os que arriscavam algum palpite baseavam-se na imaginação e hipóteses duvidosas. É claro que a maior parte das opiniões convergia para um mesmo ponto: muita tecnologia em qualquer “área” da vida humana. Isso era óbvio demais, mas não menos interessante.

Os dias se passaram tão rápido que, quando vi, eu estava novamente arrumando minha mala e escrevendo um bilhete com novas instruções e com a data de minha partida. A “viagem” foi um tanto quanto estranha, mas ainda dentro do esperado. Meu corpo tremia em convulsões indolores e só o que eu via era uma mistura de cores indefiníveis girando a minha volta.

Finalmente, eu estava lá. Alguns minutos antes eu estava em minha casa, no ano de 2009, e, logo em seguida, eu vivia o ano de 2513, como indicava a máquina. Meu nervosismo atingia seu ápice, pois não sabia o que me esperava do lado de fora.

E se não existissem mais humanos? Apenas E.T’s? E se eles me vissem, o que fariam comigo? E se o mundo estivesse em guerra? Ou pior ainda, e se não existisse mais mundo nenhum? Afinal, que garantia eu tinha para acreditar que encontraria algo além do nada? Superei meus medos e saí da segurança do meu casulo.

Muito havia de diferente, mas existem coisas que nunca mudam. O céu continuava azul e as nuvens brancas, a grama era verde, ainda havia gravidade. As casas eram todas de alumínio e as que pareciam ser mais luxuosas ostentavam um jardim com plantas enormes de cores extravagantes. Os carros flutuavam pelo ar, seguindo um fluxo que me parecia muito organizado. Aliás, nem sei se posso chamar aquilo de carro, pois mais pareciam bolhas movidas por ar.


Caminhando pela rua, tentei descobrir em qual cidade eu estava, mas isso parecia impossível sem referências visuais. A saída era perguntar a alguém com a maior discrição possível, para que eu não passasse por louco.

Fui andando em busca da “civilização”, ansioso para ver os homens do futuro e as suas roupas espaciais, mas, minha surpresa foi ainda maior ao ver um casal caminhando de mãos dadas, felizes, sorridentes... e nus. Aquilo seria extremamente normal para 2009, um casal de um homem e uma mulher, andando juntos na rua, não fosse o fato de estarem despidos. Pensei que talvez eu estivesse em uma área de nudismo, e vi ali uma boa oportunidade de me informar sobre minha localização. Aproximei-me do casal e, no exato instante em que fui visto, notei o pavor incendiar-lhe os olhares. Assustados, saíram correndo, o que me deixou ainda mais surpreso. Apressei o passo para encontrar logo outras pessoas, e acabei chegando ao que seria o centro da cidade. Lá, dezenas de pessoas circulavam vestidas com a roupa que vieram ao mundo. Nus em pelo.

Concluí que estava em uma cidade naturista, mas ainda me faltava saber seu nome e onde exatamente estava localizada. Era interessante pensar que, talvez, o Afeganistão opressor e tradicionalista da minha atualidade vivesse essa nova realidade libertária. Porém, estava impossível eu conseguir me comunicar com alguém, pois todos me olhavam com repúdio. Olhei pra mim mesmo, tentando achar algo discrepante além de minhas roupas, mas eu era fisicamente idêntico a qualquer homem ali presente.

Pasmo com a situação, mal eu imaginava que o pior ainda não havia acontecido. De repente, fui abordado por dois homens (nus, obviamente) que me ameaçavam com um objeto prateado, enquanto evitavam olhar para mim. Eles me empurraram até a sua “bolha”, gritando coisas horríveis ao mesmo tempo em que não me deixavam argumentar em minha defesa.

Fui levado para uma espécie de delegacia e, durante o trajeto, percebi que todos, sem exceção, andavam nus. Sendo assim, conclui que eu estava em um ambiente em que o “fora da lei” era eu. Ouvi as acusações da autoridade:
· Atentado violento ao pudor
· Uso indevido de recursos naturais
· Desrespeito à autoridade
· Perturbação a ordem pública
Eu me desculpei e fui liberado... sem roupas.

Andando a esmo pelas ruas, achei uma biblioteca e percebi que ali estava a minha grande chance de sanar todas as minhas dúvidas. Fui logo em busca de periódicos e, não os achando, pedi ao atendente robô. Ele me veio com um objeto, o qual chamava de jornal, que mais parecia com uma pequeníssima folha de papel transparente. Ao invés de virar as páginas para ler as noticias, elas corriam à medida que eu as lia, como se acompanhassem o meu olhar. Li notícias de todos os tipos e todas elas confirmavam que o mundo havia mudado drasticamente. Eu não estava em uma cidade naturista, mas em um mundo naturista.

Procurei em livros de história o curso dos acontecimentos e descobri que, há cerca de duzentos anos, o fim do mundo estava próximo. A natureza morria aceleradamente e o homem apenas piorava a situação, acabando com os poucos recursos naturais que restavam. Os cientistas avançaram com suas pesquisas, e descobriram que a solução mais viável era conseguir a total harmonia entre o homem e a natureza. Ao ler isso, não consegui conter uma gargalhada. Afinal, que cientistas do futuro são estes que repetem o que até meu sobrinho de quatro anos vem aprendendo no colégio?

Continuando a minha leitura, vi que a situação não era nem um pouco risível, mesmo porque, os cientistas dos séculos XXV e XXVI partiram da teoria e do falatório para a prática. Todos os recursos não renováveis passaram a ser substituídos por outros, e mesmo os renováveis eram usados com cautela. Sendo assim, os produtos feitos com esses recursos renováveis tiveram sua matéria-prima substituída por substâncias sintéticas que não agrediam a natureza e protegiam o homem.

As roupas, feitas de algodão, lã, seda, e outros tecidos, tornaram-se desnecessárias a partir do momento em que um creme isolante térmico e com fator UV altíssimo, foi criado. Isso explicava tudo. O fato de eu estar vestido infringia as leis naturistas universais vigentes, pois eu usufruía de um bem muito valioso, visto que era natural.

Fiquei admirado com o senso de consciência que a humanidade conseguiu desenvolver ao longo dos anos, o que não correspondia com as expectativas. Reparei que a sociabilidade tornara-se fácil e qualquer tipo de preconceito, por ser considerado primitivo, estava extinto. Mesmo não dispondo de objetos que pudessem registrar o momento, eu sabia que era hora de voltar para casa. Chequei a máquina e nunca tive tanta pena de ter que usá-la, mesmo porque eu sabia que não viveria tempo suficiente para gozar de toda aquela benesse. Dei uma última olhada no “paraíso” e girei o botão.

Cometi um pequeno engano, engano esse nada fora do esperado, afinal, era a primeira vez que eu voltava do futuro e acabei parando a uma quadra de minha casa. Sai do casulo e fui caminhando tranqüilo, refletindo sobre aquele mundo tão utópico, mas ao mesmo tempo tão real.
De repente, fui abordado por dois policiais, que me ameaçavam com um cassetete, enquanto evitavam olhar para mim. Eles me empurraram até o camburão, gritando coisas horríveis ao mesmo tempo em que não me deixavam argumentar em minha defesa.

Fui levado para a delegacia e durante o trajeto, percebi que só eu estava nu. Sendo assim, conclui que eu estava novamente em um ambiente em que o “fora da lei” era eu. Ouvi as acusações da autoridade:
· Atentado violento ao pudor
· Desrespeito à autoridade
· Perturbação a ordem pública
Paguei a fiança e fui liberado... com roupas.
Pois é, a máquina me levou ao passado e ao futuro, mas não me vestiu.


Letícia Mueller

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom, Letícia. Curti a viagem. Vou dar um pulo no futuro qualquer dia desses, pegando a 101 e dando um chego na Praia do Pinho. rsrs
Faz todo sentido a projeção, também aposto num futuro de menos casca e mais consciência.
Beijo, Fofulety.

Mario