sexta-feira, 21 de maio de 2010

O Grande Encontro


Os olhos abriram-se em sincronia com o ritmo de seus sonhos. De uma perseguição mortal e misteriosa, para um quarto escuro e úmido, cheirando a inverno. Lá fora, enquadradas pela janela-moldura, só as pombas resistiam ao tardio despertar do sol e o tempo que embaçava a janela.
Ele ali, aquecido sobre as mantas e pelo sangue quente de atleta que correu por horas a fio. Sempre tivera sonhos demasiados reais, mas nada que umas horas em alerta não entregassem toda a fraude.
Sentia que, lá em sua extremidade, estava sem meias. Sentia o toque dos dedos compridos encostados uns aos outros, buscando um calor que não vinha. Balançavam levemente, de forma quase imperceptível, assim como o vôo dos beija-flores. A pele branca iluminava ainda mais as manchas rochas e esverdeadas espalhadas pelo pé despido.
E o corpo quente. Calçou um par de meias caído sobre o chão e viu o calendário de 2010 jogado ao lado da cama, com o dia 3 de maio circulado com caneta vermelha. Não se moveu por 10 segundos tentando alcançar seus pensamentos, até que enfim, quando já restabelecido do choque, foi a cozinha passar café. O seu pé voltara à cor normal.
“Mas já é hoje? Meu deus, como passou rápido”, pensava ele, colocando a chaleira no fogão. “Não pode ser, alguém teria me avisado. Alguém teria, com certeza. E se eu não tivesse visto o calendário? Perderia tudo, a minha chance. E ninguém me avisou, ninguém. Se bem que devem ter pensado que eu já estava preparado a meses...é, devem ter achado que eu ficaria irritado caso me ligassem”.
A água borbulhava dentro a chaleira.
“Todos devem pensar que passei todo esse tempo treinando. É... mas e se... e se não me ligaram porque não querem que eu vá? E se eles tem medo de mim? Ou será que acham que eu não sou capaz? Impossível!”.
A chaleira balançava sobre o fogão, a água fervia.
“Eles não podem fazer isso. Eu vou acabar com eles, com cada um daqueles imbecis. Quem eles pensam que são. Bando de ... “
Ele acorda com o grito da chaleira que fumegava aborrecida com os pensamentos do amo.
Tentando acalmar-se, ele prepara o café em total silêncio, evitando os pensamentos para agir com astúcia. Não pensaria naquilo o dia todo.
Pronto. Ótima idéia. Iria trabalhar, almoçar, fumar, fazer tudo como o de conforme, e no fim do expediente, comparecia ao lugar marcado como se tudo não passasse de um encontro casual com os amigos com cerveja. Depois iria para casa, dormiria tranqüilo e acordaria na outra manhã com seus pombos e sua chaleira.
Durante a manhã, derrubou café cinco vezes em sua roupa, levantou da cadeira para ir fumar pelo menos 20 vezes, das quais 17 desistiu, repreendido pelo olhar do chefe. Sua camisa branca ficou encharcada em suor, o cabelo besuntado em sujeira de tanto ele passar a mão na cabeça.
Durante o almoço, aproveitou que o escritório ficava vazio para estudar suas estratégias e movimentos. Teria que se precaver, antecipar suas ações, ser discreto, ou senão seria um desastre. Perderia tudo, afinal, poderia até ter esquecido da reunião, mas foi uma falha única. Vivia para aquilo. Era seu alimento, sua razão.
Elaborou esquemas até não conseguir mais mexer as mãos, esperando ansiosamente a hora de ir embora.
Ficou esperando que algum deles lhe telefonasse, mas nada aconteceu. Provavelmente, eles estavam tentando ser discretos. O que tinham em mãos era um segredo que jamais fora ou seria revelado.
18 horas. Fim do expediente, hora de bater o cartão e ir embora. Mal passou pela porta, já arrancou a gravata e tirou a camisa de dentro da calça. Faltavam menos de 30 minutos para a decisão.
Tinha que estar relaxado pra quando chegasse a hora.
Porém, por mais que tentasse, não conseguia manter a concentração. O suor escorria incessantemente por seu pescoço e suas mãos tremiam tanto que ele demorou 2 minutos para colocar a chave do carro na ignição.
Deu a partida, abriu todos os vidros, e tratou de respirar lentamente. Ainda teria 40 km para se estabelecer. Precisava oxigenar o cérebro.
A fumaça paira sobre o ambiente escuro. Vultos vestidos de preto estão sentados ao redor de uma enorme mesa redonda e quase a fazem vibrar com tanta tensão. Ali, parece proibido o contato olho a olho. O silêncio só é quebrado no momento exato em que cada um deve falar.
Atento a tudo, relembrando suas estratégias, ele anseia a hora de falar. Olha para todos os presentes, e tem vontade de pegar um a um pela gola da camisa, colocá-los contra a parede, até admitirem a verdade. Tinha certeza de que não mantinham aquele segredo a salvo.
Pensando no que aconteceria se sua mãe um dia descobrisse sobre tudo, quase ele perde sua chance de falar, mas ágil como era, ele levanta da cadeira e grita:
- SUUUUUUUUUUUPER TRUNFO!
Embaraçado, ele senta-se novamente, pega as cartas na mesa, e volta a suar.





Letícia Mueller

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