quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Das afinidades eletivas e amizades coloridas

Existem aqueles que afirmam categoricamente que não pode existir amizade despida de segundas intenções entre homens e mulheres. E outros, como eu, que sabem que uma saudável amizade sem expectativas amorosas/sexuais é perfeitamente possível. Tenho excelentes amigos com quem tenho grandes afinidades (musicais, literárias, cinematográficas, etc), mas com quem não tenho nenhum tipo de relação além disso. Contudo, nunca poderemos desqualificar o elemento "foi, é ou será" - com o qual um grande amigo (somente amigo mesmo rs) costumava classificar alguns relacionamentos.

Durante uma boa parte da minha vida, fui extremamente rígida em termos de critérios: amigos, amigos, amores à parte.. e assim eu vivi tentando não misturar alhos com bugalhos até uma certa altura da minha existência em que outros acontecimentos, que não vêm ao caso aqui, extirparam esse pensamento taxonomista e classificatório da minha mente. E ai, descobri, parafraseando caetano "a dor e a delícia" desse tipo de relação que tanto pode gerar alguns frutos bem maduros (das minhas resultaram belos textos e até uma canção) e outros nem tanto (perder o amigo após as múltiplas confusões sem dúvida é o mais doloroso).

A maior qualidade de uma relação desse tipo é o potencial de experimentação e o aprendizado dela decorrente. Experimentamos limites, nos colocamos frente à alteridade, testamos sentimentos como ciúmes, paixão, tesão, amizade incondicional, admiração sem rotular ou esquadrinhar determinações, uma vez que a relação contém um hibridismo de componentes que muitas vezes não está presente em uma "relação formalmente constituída e classificada". Isso claro, até o dia em que um dos lados da balança sai do prumo, ou ambos, seja para a descoberta que efetivamente não há interesse amoroso ou justamente ao contrário. Ou alguém decide sair fora e quebrar o circuito. Há sempre um determinado ponto que cria a instabilidade e ai é hora das coisas serem encerradas... ou não?

Abaixo, escrevi 2 minicontos inspirados pela temática, haja vista que nenhuma teoria pode dar conta da profundidade desse objeto... qualquer semelhança é mera coincidência.

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Virna e Rai - amaldiçoados por Hades

Virna continuava obcecada pelo ex, mas sempre ligava para Rai, "o amigo" fotógrafo. Invariavelmente terminavam a noite jogados no colchão daquele kitinete no centro da cidade, bebendo vinho e ouvindo algum disco de rock melancólico. Tudo começara devido a uma maldita discussão sobre literatura na rede e se configurara presencialmente por culpa de um filme de Wim Wenders. Rai era genial, culto, sensível, brilhante, true artist diria Oscar Wilde, uma daquelas mentes que encontramos perdida por aí a cada milênio com sua sabedoria infinita, capaz de saber a primeira frase de cada livro já lido que se acumulava pelo canto do apartamento (e eram muitos). No entanto, apesar de todo aquele conhecimento enciclopédico, Rai não conseguia dizer um simples não a Virna, uma garota perturbada, mimada às vezes - ok, ela tinha alguns encantos também, embora não estivesse muito alerta deles, que lhe causava dores imensas. Houve uma noite em que Virna extrapolou os limites, saiu com um de seus inúmeros ficantes na época - que fazia questão de contar todos os detalhes a Rai - e após uma noite de bebedeira em um desses botecos "pé sujo" da cidade, ela ligou para Rai ir buscá-la (pelo simples fato de que ela não estava mais a fim de continuar com o tal ficante). Rai apareceu abaixo de um chuva torrencial com um guarda-chuva, furioso mas com o abraço acolhedor. Terminaram como sempre terminavam nas madrugadas frias de uma capital gélida. Após essa noite, se viram muito pouco, em pequenos encontros ocasionais na esquina do supermercado. Virna agora achava o tal "ex" um tremendo "babaca", como sempre Rai lhe dissera, mas nunca esquecera as madrugadas etílicas em que ria encostando na barba de Rai, após dizer seu clássico aforismo "transar ouvindo led zeppelin é tão retrô!".

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My precious - o anel e as memórias deletadas

- "Tu fugiste de mim!" - disse ele
- "Não fugi, apenas não comentei nada sobre o que eu ia fazer"- respondeu ela à acusação
Nesse instante John, amigo de ambos que teclava freneticamente em uma comunidade online, grita da sala: - Parem com isso! Porque vocês estão falando em inglês?
- "Porque eu não quero que a minha irmã escute, esqueceu que ela tá dormindo no quarto ai do lado? E como ela nao fala inglês, fica mais fácil" - comenta Ela.
John retorna às discussões entre nicks e emoticons um pouco mais resignado.
- "Tá, agora não foge e volta pra nossa conversa" - Ele a pega pelo braço, daquele jeito ao mesmo tempo grosso, forte mas atencioso - "Deixa o John, pq ele não vai falar nada pra ninguém"
- "Eu sei, mas esse não é lugar pra essa conversa. Estamos na sacada do apê com um frio de rachar, vento e parte da minha família ai dentro perigando ouvir tudo" -
- "Até parece que tu liga muito pra isso, ou pelo menos não ligava naquela vez do táxi, lembra? A corrida do aeroporto até aquele bar"? - afirmava ele com aquele sorriso debochado que a deixa louca e a mão no joelho dela
- "Eu sei, mas agora está tudo diferente, é outro contexto. Não dá mais, eu quero tentar ser diferente dessa vez"
- "Eu duvido. Tu vais sucumbir em algum momento. Eu te conheço bem, somos iguais, lembra?" - diz ele aproximando a boca da orelha dela
É óbvio que ela lembra, se é que alguém poderia esquecer do homem com quem se pode debater teoria da sci-fi na manhã após uma noite de devassidão; do homem que te oferece pão de queijo e café da manhã todo meiguinho após ter falado as maiores "barbaridades"; do homem que escreve uma letra de música pra ti, só pra ti, com referências que só os dois entenderiam.
- "Mas querido, não posso mais, eu tomei uma decisão e preciso mantê-la" - ela responde sem uma grande convicção
- "Tu poderia ter me dito né? Tu acha que eu me despencaria até aqui se eu soubesse, tu nunca me falaste" - reclama ele
- "Ah, eu só não falei, tu nunca me perguntaste".. ia falando ela até que o olhar vislumbra algo prateado no dedo dele... "Tu compraste? Não acredito, que lindo, adorei"!!, diz ela
- "One ring, to rule them all - fala ele em um tom característico a ambos - "Sabia que tu irias gostar"!
- "Mas naquela época tu não mostraste interesse" - recrimina ela - retornando à conversa
- "Tu também não.. se eu soubesse que era um outro tipo de relação, menos formal, eu teria investido" - diz ele a encarando like the last night on earth
- "É, mas tu também não perguntou" - disse ela contrariada - "Things get damaged
Things get broken. I thought we'd manage But words left unspoken...Sério, essa conversa vai ser daquela que vamos lembrar para sempre'
- "Mesmo que deletem nossas memórias" - ele afirma sorrindo
- "Sim, mesmo que as deletem em um futuro não muito distante"
- "Por que a gente não vai dar uma volta? Tomar um café?- ele encerra a conversa com as mãos no ombro dela.

Lady A.

6 comentários:

Anônimo disse...

Adri, transar ouvindo Led Zeppelin pode até ser retrô, mas ao som de "Rain Song" é sublime forever and ever. rs
A segunda história é (semi)auto-biográfica? Esse lance de teorias de sci-fi me pareceu meio familiar, hein. hehe
Beijo, Desaforada subversiva.

Mario

Anônimo disse...

Mario, existem elementos autobiográficos sempre, o que não quer dizer q efetivamente seja assim que as coisas aconteceram. O imaginário é sempre mais interessante do que a história real. bjo

A.

Anônimo disse...

adri, adorei!
bj.

mônica

Anônimo disse...

Adri, sabe que também sempre fui partidária que poderia existir amizade verdadeira entre um homem e uma mulher interessante. Mas qdo parei pra dar exemplos, me toquei que o seu amigo está certo. O fator "foi/será" realmente existe, nem que seja só na cabeça e desejo de uma das partes em algum momento da relação.
Mazé

Anônimo disse...

Só pra tocar mais lenha na fogueira, o grande amigo que me falou sobre o fator é/foi/será é gay, o que pode ainda comprovar mais essa hipótese!

Anônimo disse...

ops esqueci de assinar o comment acima e mazé e monica, thanks!

ladyA