domingo, 21 de setembro de 2008

Músculos em prova


Nem Carolina Ferraz, nem Grazi Massafera. A mais bela mulher que já passou pela produtora, na opinião dele, era uma menina. E nem tinha a fama das atrizes que apareciam nos estúdios para gravar comerciais. Na verdade, ela era funcionária da produtora. O que tornava ainda mais difícil para ele a tarefa de disfarçar sua atração por Aninha, a assistente do núcleo corporativo.
Embora saudoso de suas trancinhas, apreciava a nova pintura de um vermelho intenso. Na convivência diária e obrigatória, ele se flagrava constantemente a desviar o olhar daquela personagem sorridente que vez ou outra saía do ambiente de escritório para entrar num set de filmagem, geralmente trazendo um roteiro ou uma risada para os membros da produção que o embaraçava e enciumava. Gostava de suas calças jeans, geralmente coladas ao corpo mas nunca de cintura baixa. Também admirava suas botas de cano alto, seus brincos exagerados e os óculos de sol moderninhos que cobriam aqueles olhos hipnóticos.
Mas quem era ele para conquistá-la? Hierarquicamente estavam na mesma posição, pois também era assistente, só que da produção. Trabalhava duro carregando equipamentos para dentro dos estúdios ou das unidades móveis, ajudando a montar algum cenário ou fazendo a tarefa que mais o encabulava: a de ficar em frente à câmera, na posição prevista para o ator, enquanto o diretor de fotografia fazia a luz, pois nunca sabia para onde olhar e tinha verdadeiro pavor de um dia vir a ser filmado de verdade. A função não lhe daria muito status, ele sabia, mas preferia isso a trabalhar com o tio vidraceiro, de dedos sempre machucados, justificando que “vida de vidraceiro é assim mesmo”. Isso não é vida, pensava ele enquanto se esquivava dos convites “sedutores” do irmão de sua mãe.
Só lhe restava fantasiar um hipotético momento mágico com Aninha, quem sabe em algum dos cenários de estúdio montados por ele próprio . Não, as câmeras internas jogariam a cena imediatamente na sala do diretor-superintendente, com quem ele quase não tinha contato, mas que julgava ser muito poderoso, a tirar por base o tamanho de seu carro prateado, que chegava a fazer as vezes de fundo para fotos de universitários que eventualmente visitavam a produtora. Mas o destino lhe foi generoso, e seu sonho então se enveredou para a realidade de forma tão pouco verossímil quanto os próprios comerciais que via serem filmados diariamente. Num dado horário de almoço, enquanto desenrolava cabos e digitava textos para um teleprompter (tarefa esta que pela primeira vez lhe caía em mãos, assustando-o por não ser pessoa muito letrada), eis que observou Aninha, surgida do nada, sentada na poltrona que logo à tarde seria ocupada pelo presidente de um grande banco. Num primeiro momento, não acreditou que fosse verdade, mas era. Naquele imenso estúdio, apenas ele e Aninha. A garota parecia alheia à sua presença, ficando concentrada em um livro que lia enquanto balançava agitada uma das pernas. Ele olhou receoso para as câmeras do circuito interno, e então se deu conta de que o diretor-superintendente já havia saído para almoço em seu possante. Mas o que dizer para se aproximar de Aninha. “O que você está lendo?”, não, estúpido demais, poderia até ouvir em resposta um “não é da sua conta”, embora ele percebesse que grosseria não fazia o feitio da garota.
- Ei, você me ajuda?
Não acreditou novamente, mas era sim ela chamando-o. Por pouco não soltou um “eu?!”, o que seria ridículo, já que estavam apenas os dois no estúdio. Aproximou-se e Aninha lhe esticou o livro que estava lendo, pediu para que o pegasse e tomasse a lição para uma prova de músculos. Estranhou de imediato a matéria, indagando consigo mesmo se deveria haver prova de pele, de ossos, etc. Sabia que Aninha fazia Estética e Cosmética em uma faculdade, e também estranhava a informação, porque até o momento em que foi contratado pela produtora nunca havia ouvido falar de um curso assim. Mas isso era irrelevante naquele momento, tratou de se sentar na poltrona ao lado de Aninha, onde mais tarde estaria alojado o traseiro de um apresentador famoso da televisão.
Olhou a página na qual estava aberto o livro e viu a figura de um corpo humano, só que todo “em carne viva”, como diria sua mãe. Observava seus músculos e várias setas apontando para os nomes de cada parte, todos estranhos: levator scapulae, rotato cuff, gastrocnemius, e outros tão pouco convencionais que passou a achar normais os nomes de seus primos nascidos no interior. Mas ele não sabia como tomar aquela lição, pois seria preciso ver a figura para indagar qual o nome de uma dada região do corpo. Então Aninha teve uma idéia: ele apontaria alguma parte do corpo dela para que então respondesse qual é o respectivo músculo. Ele não soube como dizer não, mas sentia suas pernas se afrouxarem de medo ao ter de apontar aquele corpo que mal tinha a audácia de apreciar, a não ser à distância. Começou pelas partes mais simples, apontou e vieram as respostas: “trapézio... tríceps... bíceps...”. Mas logo ele teria de apontar para regiões mais indiscretas. Apontou para a barriga: “reto abdominis”, ela disse de pronto. Mas como continuar e apontar para o peitoral maior, por exemplo. “Anda, a gente não tem tempo”, pediu Aninha impaciente. O dedo dele então ficou pairando no ar, enquanto seus olhos buscavam na página algo que não fosse indiscreto. Quem sabe ele próprio conseguisse coragem para apontar uma área indiscreta sem parecer indelicado. Ficou hesitando por alguns instantes até que a porta pesada do estúdio foi aberta de súbito. A dupla pulou das poltronas, vendo surgir então as figuras do diretor de cena e da produtora, indagando se o TP estava pronto, ao que ele respondeu afirmativamente com um meneio de cabeça (mentira, mas teve medo de falar a verdade). O casal voltou a desaparecer pela porta, deixando-o novamente a sós com Aninha. Mas agora ela olhava no relógio e se dava conta de ter de voltar ao trabalho, pois começava mais cedo o expediente da tarde para poder se liberar antes no final do dia, por causa da faculdade. Despediu-se e foi caminhando em direção à porta, enquanto ele puxava de dentro de si algo interessante para dizer, mas nada surgia em seus pensamentos enturvados pelo nervosismo. Foi quando lhe saltou um convite para fora da boca, voluntariando-se para lhe tomar a lição no dia seguinte se ela assim o quisesse.
- Amanhã é sábado, bobo.
Aninha riu, e virou-se para voltar a caminhar, deixando-o embaraçado e lamentando não ter ficado de boca fechada. Mas então, ela parou já quando abria a porta, virou-se e voltou a caminhar em sua direção. Ele nada entendeu, e só restou aguardar a aproximação de sua paixão secreta. Aninha então aceitou o convite, dizendo que, se ele quisesse, poderia ir em sua casa no sábado à tarde. Mais uma vez ele concordou com um meneio de cabeça. Aninha então anotou num pedaço de papel que restava sobre o teleprompter o seu endereço, que ficava a apenas duas quadras da produtora, e um mapinha mal traçado. Entregou em suas mãos e arrematou:
- Então, eu te espero amanhã às duas.
Para ele, aquilo não era um pedaço de papel com um endereço anotado. Era um bilhete de loteria premiado.
Enquanto se deslocava no balanço do biarticulado, ele procurava lembrar de coisas que poderia dizer a ela na hora de puxar conversa. Dentro de no máximo quinze minutos desceria no ponto do Parolin e caminharia até a casa de Aninha, não lhe restava muito tempo para arquitetar seus planos de ser simpático e impressionar. Sabia pouca coisa dela, quase todas as informações vinham por terceiros ou nas caronas de conversas que pegava da garota com os outros integrantes da equipe de produção. Estava temeroso de ter entendido algo errado e soar indelicado. Sabia, por exemplo, que o pai dela tocava acordeon. Mas e se ele não fosse mais vivo? Mexer no assunto poderia ser altamente deselegante. Ele já havia visto algo similar acontecer quando um eletricista da produtora perguntou de um cãozinho que Aninha havia ganho: “ele morreu”, disse ela com olhos marejados, fazendo o rapaz desejar que o teto do estúdio caísse em sua cabeça. Não, ele não iria passar pelo mesmo risco. Preferia ficar calado. Bem mais seguro.
Agora, conferindo no mapa se estava caminhando na direção certa, ele passava a ser acometido por um nervosismo que só crescia a cada novo passo que dava. Constatava que o pouco que conhecia de Aninha não renderia mais que quinze minutos de conversa: sabia que a avó dela morava em Piraquara, que detestava futebol, álcool e cigarro, e que era péssima de cozinha mas adorava carne, visto o número de repetições de picanha na festa de final de ano na produtora. Mas que tipo de conversa esses dados poderiam render: um “que legal, sua vó mora em Piraquara e a minha em Quatro Barras” não faria o menor sentido; tampouco um “eu adoro maminha”, poderia até soar como duplo sentido. Pior: ele gostava de uma cervejinha e só dispensava o futebol na TV sábado à tarde por motivos de força maior. Como aquela força magnética que agora o atraía para um bairro tão distante do seu.
Parou na frente da casa de Aninha e tocou a campainha, tentando avistar alguma movimentação por entre a grade instalada acima do muro. Uma cadela cocker beje correu até o portão fazendo alvoroço. Depois se uniu a ela uma vira-lata, que passou a latir insistente, sendo no ato recriminada por sua dona.
- Pe, quieta!
Aninha veio recebê-lo de pijama, correndo de braços cruzados sobre o peito e olhando para os lados para não ser flagrada naqueles trajes pelos vizinhos. Abriu o portão e deu-lhe um beijo rápido na face. Ele a seguiu até o interior da residência, que parecia estar vazia.
- Me espera aqui.
Ficou na sala enquanto Aninha se trocava no quarto. Foi então que percebeu haver na casa uma outra cachorra, que sem demora veio lhe fazer festinha, saltando pelas pernas. Ele não lhe deu muita atenção, pois preferiu permanecer em pé enquanto ouvia o roçar das roupas despindo e vestindo o corpo de Aninha. Um zíper sobe e logo ela surge pela porta do quarto, abrindo um sorriso e ainda arrumando os cabelos de quem recém-acordou.
- Teve festa ontem.
Ele apenas franziu o cenho em sinal de “ah, entendi”. Ela estava vestida com uma jardineira jeans que de pronto chamou sua atenção, por ser uma peça ao mesmo tempo tão comportada e tão insinuante, já que era em modelo mini-saia.
Aninha então caminhou de novo para fora da casa pedindo que a seguisse. Foram até o quintal, passando pelos varais onde estavam pendurados lençóis e roupas íntimas. Procurou desviar o olhar para não parecer indiscreto, mas estava curioso e desejoso de ver uma peça que pudesse deduzir como sendo de Aninha. Naquele espaço nos fundos da casa havia diversas árvores frutíferas oferecendo vistosas jabuticabas, laranjas, limões e pitangas.
- Gosta de mimosa?
Aninha perguntou sem esperar resposta, já se esticando para colher uma tangerina que de tão alaranjada parecia poder ser vista no escuro. Ele começou a ajudá-la na tarefa. Observava suas unhas pintadas de esmalte escuro cravando na casca frágil da tangerina, soltando um spray de aroma forte e ácido. Estanhava o fato de Aninha ser tão menina, mas de deixá-lo tão nervoso ao ponto de ele acabar se sentindo o moleque da história. Aquela experiência bucólica de colher frutas parecia, para ele, coisa de duas crianças, mas não se importou com a tarefa. Principalmente porque, ao se esticar para pegar os frutos, Aninha deixava aparecer mais de suas pernas lisas e de uma morenice Pocahontas. Só lamentou que a jardineira não permitia a ele avistar o piercing no umbigo (informação ouvida em conversa na recepção da produtora e que só agora ele recordava). Voltaram para dentro da casa carregados de frutos. Na verdade, ele estava carregado de frutos, pois Aninha apenas descascava e chupava os gomos de um belo exemplar, cuspindo sementes no chão, instantaneamente cheiradas pelas cadelas que os acompanhavam no breve passeio.
Na cozinha, despejaram os frutos pela mesa, mas nem chegaram a prová-los. Aninha deixou sobre a pia metade da mimosa, lavou suas mãos com detergente e o chamou para seu quarto. Ele ficou mais nervoso, pois havia imaginado que a lição seria tomada na sala. Entraram no quarto e Aninha foi até seus livros procurar o que tinha as páginas com esquemas ilustrativos de músculos. Enquanto isso, ele, ainda em pé, apreciava a decoração. Na cama de casal havia um urso grande e um cão beje, com o pescoço adornado por um cachecol cor-de-rosa. Um sonoleve pink, com ilustrações florais, ainda restava desarrumado sobre o leito. À frente da cama, um computador ligado em tela com MSN aberto e um sinal de alguém querendo papo. Ao lado da cama, uma cômoda na qual se via o burro Bisonho, da turma do ursinho Pooh, olhando-o com certa apatia. No mais, um guarda-roupa, uma TV e uma penteadeira com espelho. Mas o que mais lhe chamou a atenção foram as fotos: ao lado da TV avistou um porta-retrato onde se podia ver os cachorros de Aninha, mas não era isso que o incomodou, e sim um painel com várias imagens colado na parede, certamente exibindo familiares, amigas e um rapaz abraçado a Aninha que deduziu ser seu namorado. Detestou descobrir aquela informação justo naquele momento, e não sabia o que fazer com ela. Agora era tarde. Aninha enfim achou seu livro, sentou-se como uma indiazinha sobre a cama e pediu para que ele também se acomodasse. Ficou então sentado próximo a ela, na beirada do leito, em posição muito favorável para observar a calcinha de sua amada. Ela era tão moleca que ele tinha a impressão que, se espiasse, veria uma estampa sorridente do Mickey. Mas não teve coragem, ficou com medo de ser flagrado bisbilhotando sua intimidade. Pensou em esperar mais um pouco por um momento de distração de Aninha, embora ela estivesse já bastante entretida com seu livro. Perdeu a chance, Aninha acabou se levantando.
- Pera aí.
E como poderia ser diferente? Claro que esperaria, embora não soubesse o que. Passou a folhear o atlas do corpo humano de Aninha, enquanto observava o silêncio do lugar: só havia o som dos passarinhos e mais nada. Chegava a lembrar suas idas ao interior para visitar os tios e avós.
Aninha voltou ao quarto com uma travessa de bolo de cenoura coberto de chocolate em uma das mãos e uma garrafa de Fanta na outra, tendo sobre o gargalo dois copos com a boca para baixo, que tilintavam no toque dos vidros. Serviu-se de refrigerante e encheu outro copo para ele, aproveitando em seguida para fazer cortes de ponta-a-ponta no bolo, quadriculando-o todo para facilitar a divisão de fatias.
- Ih, faltou guardanapo.
Aninha improvisou com folhas usadas de papel sulfite, fazendo as vezes de aparato para as migalhas. Ficaram ali sentados e comendo, com Aninha recuperando o livro para chegar na página desejada, acomodando-o sobre o colo e virando as folhas com o dedo mínimo, já que uma mão estava ocupada com o bolo e a outra com o refrigerante.
Ele apenas a observava sem saber o que dizer. Atrapalhado com a situação, deixou um pedaço do bolo cair dentro do copo de Fanta, com o chocolate amarronzando a bebida.
- Bobo.
Disse Aninha rindo. Ele já havia percebido que “bobo” era a ofensa mais comum dela. “Tongo” e "chato" também eram de praxe. Só a ouviu uma vez dizer “vai à merda” a um colega de produtora, e isso em tom de brincadeira. Apenas a si mesma reservava o palavreado mais chulo: “sou uma cuzona”, ela disse certa vez para a recepcionista ao assumir ter medo de escuro.
Enquanto comentava da festa do dia anterior e colocava seus óculos de 3,25 graus de miopia, Aninha foi até o computador e acionou o media player para ouvirem alguma música baixinho. A primeira a puxar do set list foi “Garganta” da Ana Carolina. A estrofe de abertura chamou a atenção dele pela familiaridade da letra:
Minha garganta estranha
Quando não te vejo
Me vem um desejo
Doido de gritar
Ele se indagava se iriam conseguir estudar com bolo, Fanta e música, mas na verdade suas intenções lá não se resumiam a fazê-la tirar uma boa nota (embora, claro, torcesse por seu desempenho). Aninha percebeu sua curiosidade por um equipamento que estava no chão.
- É um CDJ.
Explicou então que o namorado era DJ, tocava música eletrônica na night e, mais tarde, viria buscar o equipamento. Ele nunca entendeu o que fazia um DJ e desdenhava a função, afinal também sabia apertar botões e ligar um aparelho de som. Seus olhos não paravam de transitar pelo ambiente em busca de informações para puxar conversa. Avistou um chapéu cor-de-rosa, mas o que poderia comentar ou perguntar sobre ele? Então percebeu sobre o balcão da TV um catálogo de lingeries, e Aninha aproveitou a deixa para dar vazão a seus dotes de vendedora.
- Minha mãe vende calcinhas, quer?
Soltou uma risada e depois remendou a brincadeira, dizendo que talvez ele pudesse querer comprar para sua namorada. Semi-constrangido, ele assumiu não ter namorada. Aninha levantou-se e pegou o catálogo, mostrando alguns modelos e apontando os que apreciava: os que ela própria definia como “mais menininha”. De súbito, ela fechou o catálogo.
- Agora é hora de estudar.
Sentou-se mais uma vez na posição de índia sobre a cama, atormentando o olhar e a resistência de seu interlocutor. Ele tomou o livro em suas mãos e indagou se continuariam a lição como no dia anterior. Ela respondeu que sim. Mas foi aí que ele não conseguiu resistir e lançou um olhar entre as pernas de Aninha para ver se sua calcinha estava no catálogo. Mal deu tempo de ver que era branca, quando a garota fechou as pernas e o deixou roxo de constrangimento.
- Não olhe!
Embaraçado, não sabia o que fazer, para onde se virar ou o que dizer. Aninha ficou de joelhos sobre a cama e prosseguiu:
- Detesto meus pés!
Aliviado, constatou que Aninha havia pensando que seu olhar se dirigia a outra parte de seu corpo que não aquela que o arrebatava de tanta culpa e volúpia. Ela ainda continuou a bronca, explicando que odeia não só o seu pé, mas qualquer pé de qualquer ser humano. Ele não entendeu, mas não quis indagar os motivos, sua curiosidade se limitava a querer saber de coisas que ela gostasse, porque talvez pudesse surpreendê-la com um presente. Quem sabe um perfume, como o que avistou em sua pentiadeira, cujo frasco ostentava o número 212 (nunca havia ouvido falar).
Começaram então a lição de verdade. Apontou para a testa de Aninha, que respondeu “frontal facial”, depois para baixo de suas costelas e ouviu a assertiva “oblíquo externo”, em seguida para o ombro e ela hesitou, mas logo concluiu num sobressalto: “deitóide!”. “Deltóide”, ele corrigiu. “Isso”, ela confirmou. Só que mais uma vez ele se pegava na situação embaraçosa de ter de prosseguir e indagar sobre músculos mais íntimos. Diante da demora da próxima pergunta, Aninha se esticou toda com uma idéia de última hora.
- Já sei!
Levantou-se e pegou algumas canetas hidrocor próximas ao micro, rabiscando na palma da mão para ver se conseguiam imprimir suas cores sobre a pele. Escolheu um pincel atômico vermelho. Voltou para a cama e aproximou-se, deixando-o agora mais nervoso do que nunca, estando os dois a poucos centímetros de distância um do outro. Ela então propôs que começasse a escrever no corpo dele os nomes dos músculos, assim ficaria mais fácil de memorizar. Ele não entendeu muito bem como isso poderia ajudar, mas, como estava disposto a tudo por ela, aceitou de pronto. Aninha então começou escrevendo ao lado de sua testa, e falando alto ao mesmo tempo, “temporal”. Sobre as pálpebras rabiscou “orbicular de olho”. Na bochecha foi a vez da palavra “zigomático”. Prosseguiu com o “orbicular de boca” e o “bucinador”, chegando ao “depressor do lábio inferior” e depois ao “risório”.
- Esse é fácil porque o nome lembra riso.
Aninha falava sem interromper sua tarefa. Ele sentia cócegas mas ficava absolutamente imóvel para não atrapalhar o trabalho. Enquanto o pintava, comentava coisas variadas: que mais à noite iria a uma rave em Campo Largo, de como foi o show do Skank no Lupa Luna, o quanto ama sua mãe e até de seu sonho de ter gêmeos. "Teremos", pensava ele esperançoso. Quando sua face já estava quase toda tomada de marcações, Aninha ordenou:
- Agora deita no chão.
Novamente estranhando, mas sem hesitar (tão obediente quanto a matilha de Aninha), saiu da cama e prostrou-se sobre um tapete, com o corpo todo reto como um cadáver.
- Relaxe.
Aninha riu da situação e ajoelhou-se a seu lado. A essas alturas, Malu Magalhães soltava seu descontraído “Tchubaruba” no media player. Fechou os olhos para tentar ficar menos tenso com a presença de Aninha. Sentiu então um língua a lhe lamber a face. Assustou-se pela asperesa, e então percebeu que uma das cadelas entrou no quarto para importuná-lo. Aninha caiu em nova risada e espantou o bicho com uma chinelada indolor. Ela então voltou-se mais uma vez às suas funções estudantis.
Para surpresa dele, Aninha puxou a barra de sua calça para escreve o músculo da canela: a tal da “tibia” que ele vez ou outra ouvia falar quando acontecia falta grave nos jogos do Atlético. Mas ela desistiu da tarefa por perceber ser muito difícil de escrever em meio aos pêlos da perna. Chegou a fazê-lo se sentir culpado, imaginando que, se soubesse o que se passaria naquela tarde, teria ele próprio se depilado com Gilette.
- Mas também, músculo da canela, isso é que nunca vai cair na prova.
Aninha se conformou com o fato de haver músculos muito mais importantes para estudar. Então, talvez por efeito da Fanta ou por rescaldo dos excessos da noite anterior, começou a soluçar.
- Opa, jojoca.
Não sabendo o que fazer para ajudá-la, ele apenas recomendou que Aninha segurasse a respiração. Ela o fez, mas não conseguiu resistir por muito tempo, caindo na risada. Ele a acompanhou no riso, embora sem saber direito qual o motivo da graça. Coisa de moleca, pensou. Aninha atribuiu o soluço ao vento tomado no peito quando estavam no quintal. Ele nunca imaginou que pudesse haver relação entre uma coisa e outra. Mas mulheres são melhores em assuntos de saúde, portanto resolveu acatar. Ela não queria parar sua tarefa acadêmica, mas então fez a ele um pedido que o surpreendeu: que tirasse a camisa. Aninha tentou explicar, mas deu outro soluço e voltou a cair na risada. Ele novamente acatou sem pestanejar ou esperar justificativas. Desabotoou e colocou a camisa sobre a cama, voltando a se deitar e imaginando como este estudo de anatomia iria prosseguir.
Aninha então anotou a localização do “peitoral maior”, do “bíceps braquial” e de outros músculos que agora não só recebiam estímulos de cócegas mas também excitavam seu modelo vivo. Novamente, Aninha riscava e rabiscava como criança, seguindo as indicações do livro e comentando trivialidades: que chegou a fazerr 50 trancinhas em seu cabelo, que se sentia solitária pelas amigas que aos poucos iam se casando e até que sonhava em um dia fazer um cruzeiro marítimo.
- Quem sabe de lua de mel, né?
Ele ficou se imaginando ao lado de Aninha em um colossal transatlântico, banhando-se de sol à beira da piscina ou parodiando a famosa cena de Titanic. Mas então deu-se conta de a garota já ter namorado. A lua de mel passava a ser ambientada por música eletrônica. E ele voltava ao ponto de onde partira: deitado, pintado e lambido.
- Espera.
Aninha se levantou, deixando-o pensativo a olhar para o teto e se perguntando o que viria a seguir. Ela voltou com um tubinho de gloss, passando a lustrosa maquiagem sobre seus lábios rosados.
- Tô com a boca partida.
Ele acreditou que aquele era um puro álibi para ficar ainda mais sedutora, começava a desconfiar das intenções de Aninha. E a adorar esta desconfiança. Ela voltou a desenhar mais um pouco de sua lição de casa e a fazer um novo pedido.
- Agora vira.
Prontamente, ele se colocou de bruços, já agradecendo a mudança, pois o tapete começava a pinicar suas costas. Sentiu então a ponta porosa do pincel a passear por seu dorso nu. Aninha novamente pediu um tempo, fazendo-o quase se irritar com tanta movimentação. Quase, porque ele seria capaz de deixá-la sapatear nas suas costas se assim quisesse. Ela levantou-se, pegou um maço de fotos na mesa do PC e colocou-o à frente de seu homem-prancheta.
- Pra você não morrer de tédio enquanto eu escrevo.
Ele então viu a vida de Aninha passar diante de seus olhos. A criança que mais parecia uma indiazinha. A vencedora de um concurso de sinhazinhas. A cover de Mel C das Spice Girls fazendo coreografia. E, lamúria das lamúrias, a namorada de um DJ que ele, sem conhecer, já considerava metido a besta. Enquanto apreciava as fotos, ela continuou a contar curiosidades pessoais ao som de Astrix no media player. Quando ele passou pelos registros dos cachorros, Aninha contou que costuma dormir com a cadela Nina, e que ela acabou aplacando um pouco de seu já confessado medo de escuro, o qual chegava a fazê-la passar frio à noite, já que evitava de levantar para pegar cobertas. Aliás, confessou dormir de TV ligada, que o pai apagava quando vinha ao seu quarto de madrugada.
- Minhas pernas andam sozinhas no escuro.
Andassem para a minha casa, pensou ele. Agora já podia elaborar um plano: se ficasse na casa dela até a noite, quem sabe a garota lhe pedisse companhia por medo de ficar sozinha no breu do Parolin. Foi então que, entre um nome de músculo e outro, Aninha soltou outra informação valiosa e insinuante:
- Adoro costas.
Ele já não sabia se continuava naquela brincadeira de lousa humana ou se tomava uma atitude. Aninha prosseguiu, explicando que foram justamente suas próprias costas a parte do corpo que escolheu para tatuar uma fada. Como nunca a havia visto, ele imaginou uma fada cor-de-rosa, de asinhas e maiô. Quase a Sininho do Peter Pan, só que não verdinha. Nesse momento, começou a tocar uma insinuante canção de Britney Spears no PC.
- Vira de novo, esqueci de uma coisa.
Quase tremendo, não sabendo se de frio por estar sem camisa ou de nervosismo por estar tão perto de Aninha, ele voltou a ficar deitado de frente para ela, que passou então a desenhar algo no meio do seu peito com a caneta vermelha. É o momento, pensa ele. Está sem camisa, deitado, no quarto dela, que se prostra sobre seu corpo desenhando e falando coisas insinuantes. Que outro sinal ele precisava? Era o momento certo!
De súbito, Aninha deu um sobressalto e curou seu soluço ao ouvir o portão da casa sendo aberto.
- O David!
Só havia uma dedução: David era o nome do namorado de Aninha. E só havia uma coisa a fazer: correr em disparada para o quintal. E é o que ele fez, só tendo tempo de pegar sua camisa e nem podendo se despedir. Avançou no meio dos varais, por entre lençóis e calcinhas, chegando até as árvores frutíferas. Pulou pelo muro, caindo na casa que fazia fundos para a de Aninha. Sob gritos de uma senhora que lavava roupas e os olhares assustados de seus filhos pequenos, prosseguiu na fuga rumo ao portão da casa, passando por ele e correndo pela rua, sendo observado com assombro por um grupo de garotos que empinavam pipa. Só então se deu conta, ainda sem parar de correr, que estava com o rosto e tronco pintados com palavras estranhas. Ao dobrar uma esquina, e já aliviado pela distância da casa de Aninha, tirou a tinta do rosto esfregando a camisa sobre a pele, vestindo-a em seguida.
Mais tarde, ao chegar em casa, mal cumprimentou os pais na sala e foi direto para o banheiro. Entrou no box e abriu a torneira do chuveiro. Tirou o resto de tinta do rosto e esfregou a esponja com força em seus ombros e pescoço. Ao olhar para baixo, constatou qual era o último item que estava sendo escrito por Aninha: na verdade, ela fez um desenho e não uma palavra. Observou então o vermelho de seu músculo cardíaco descendo pelo ralo.


Mario Lopes inspirado em personagem real, que tirou 9,5 na prova, só errando um músculo: o da canela.

2 comentários:

Anônimo disse...

Prof prefeitOo!! Escritor ... mágico ...

Anônimo disse...

Uau!! Obrigado... shazan! hhe

Mario