sexta-feira, 19 de junho de 2009

Natal Vermelho


Eu não imaginava até onde poderia chegar a oposição entre o corpo e a mente. Não com 11 anos.
Era dia 19 de dezembro e eu estava, com meus pais, na casa de minha avó, antecipando o Natal, pois viajaríamos no outro dia de manhã e só voltaríamos no início do ano seguinte. Já havíamos passado por quase todas as etapas do ritual natalino: rezamos, cantamos e nos cumprimentamos em frente ao enorme pinheiro de Natal, quase centenário, do qual minha avó cuidava com esmero há tantos anos que nem meu pai saberia contar.
Ao pé da árvore, pacotes coloridos incrementavam a decoração e aumentavam a curiosidade de desvendar o conteúdo de cada um deles. Segui meus instintos infantis e abri primeiro os presentes maiores. Ganhei novos exemplares pra minha coleção de Pollys e ansiava acabar de abrir os outros presentes para ir logo brincar com minhas novas bonecas. Não estava errada. Os pequenos pacotes eram roupas de todos os tipos: vestidos pra reveillon, conjuntos leves para o verão e biquinis. Como toda mãe que se preze, a minha quis logo me levar ao lavabo para que provasse aquele amontoado de chatices.
Quis acabar logo com aquilo, e fui correndo experimentar as roupas. Todas serviram, mas ainda faltavam os biquinis. Tentei convencer minha mãe de que eles serviriam perfeitamente, que eram lindos, parecidos com os outros que eu tinha, etc... Mas não teve jeito. Tirei a blusa e provei a parte de cima da roupa de banho. Eu mal usava sutiã. Olhei pra minha mãe, e falei:
- Pronto, perfeito.
Quis me vestir rapidamente, colocar a blusa por cima do biquini, e ir de encontro com minhas bonecas, mas minha mãe, ainda mais ágil, me estendeu a parte de baixo, prolongando a minha angústia:
- Toma filha, veste isso e você está livre.
Amuada, obedeci. Despi-me e lá estava algo que, primeiramente, me fez gargalhar. Uma mancha avermelhada contrastava com os ursinhos azuis da minha calcinha. Olhava para aquilo meio hipnotizada pela dúvida, quando ergui o pescoço até alcançar o rosto de minha mãe, e vi seus olhos marejados em lágrimas. Olhei de novo para a mancha, e minha reação foi, de pronto, pedir desculpas. Até hoje não sei se ela me ouviu. Seu olhar perdia-se num vazio que nunca compreendi e me envolveu a tal ponto que lacrimejei por achar que havia algo de errado comigo. Sentei no mármore gelado, sem nem mais pensar em Pollys, biquinis ou qualquer outra coisa que o valha. Foi nesse instante, em que ela sentou ao meu lado e me envolveu em seus braços, que ouvi a verdade sobre o que estava ocorrendo.
Apesar de já ter estudado aquele assunto nas aulas de ciência, não imaginava que aconteceria comigo, ainda mais tão cedo. Vivia meu primeiro conflito interno de menina mulher. A natureza havia me pregado uma peça, ou cometido um terrível engano. Uma menina, de 11 anos, que acabara de ganhar bonecas e estava louca pra ir brincar, não estava apta para entender que poderia gerar outra criança. A tristeza era tanta que me sentia culpada, e tinha medo da reação da minha família.
Dos meus avós, eu tinha medo que eles pensassem que haviam me dado os presentes errados, ou que eu não havia sido sincera ao agradecê-los. Das minhas amigas, eu tinha medo da rejeição, pois em uma fase em que ser semelhante aos outros é tudo, eu seria a única que estava passando pela tal transição. Do meu pai, vinha o maior medo: de perder o trono de menininha para mim mesma e quebrar a sua expectativa eterna de que eu fosse para sempre a sua criança.
Meu medo? Um sentimento de culpa por achar que havia feito algo errado, de não ter dado provas suficientes à natureza de que não estava pronta para aquilo e a fatídica descoberta de que não tinha controle sobre meu corpo. Afinal, eu era uma criança, e aquilo não estava certo. Não fazia sentido. Eu me sentia egoísta por pensar que poderia ter filhos, enquanto havia milhares de casais pelo mundo lutando para conseguir o que eu desprezava, a possibilidade de tê-los.
Cheguei ao ponto de querer ocultar de mim mesma a verdade. Limpava-me até não haver mais nenhum vestígio, ação que consumia meio rolo de papel higiênico. Eu gastava por dia, em “purificação”, mais de dois rolos de papel.
Fiquei cega para meninos. Não os olhava, apenas sentia a presença, e a evitava.
Não tinha mais a liberdade de entrar na piscina na hora em que bem entendesse, e em mim aflorou um pudor até então desconhecido. Já não me despia em frente a outras crianças no vestiário e olhava para minha calça de minuto a minuto, temendo um acidente que me levasse à humilhação já latente.
Essa foi a primeira experiência em que comprovei que a mente não tem idade, mas o corpo sim. E aí ficou a dúvida... o que eu era? Uma menina ou uma mulher?
E uma mulher já passada da menopausa? Ela pode ser mais jovial que uma moça no auge de seus 20 anos. O que elas são afinal? O que faz com que a chamem de velha ou jovem?
O que define o que somos? O que os outros vêem? Ou o que pensamos?
Platão já dizia: “O corpo é a prisão da alma”.


Letícia Mueller

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito tocante, Letícia. Eu que nunca menstruei consegui ter a sensação de como é ter a menarca. E não tanto em seus efeitos físicos mas sim nos mais importantes, os emocionais.
Beijo, Desaforada Fofulety.

Mario