sexta-feira, 30 de abril de 2010

O Vício De Um Ex-Cidadão Comum


João José da Silva. Típico cidadão brasileiro. Aliás, típico até demais. Exagerava na pobreza e na ignorância. Não tinha nada, mas sempre dava um jeitinho pra tudo. A comida já faltara à mesa, mas a fome dificilmente chegava à barriga, ou à consciência, como diriam alguns. Era menino, só 14 anos, mas já trabalhava como um de 25. Nasceu sem pai, e praticamente sem mãe. Podia contar nos dedos quantas vezes a via por ano. Mas tinha irmãos. Alguns vários irmãos. Uns de sangue, outros da vida, mais um outro tanto que nem Deus seria capaz de dizer da onde viam. Mas eram todos irmãos. Todos pobres. Magros. Famintos. Cheirando a doença, falta de banho, cupim, casa de lego.
João José trabalhava muito. Batia cartão, mas não abria mão dos bicos. Se não estava dormindo, estava trabalhando. Vida dura.
João José era feliz entre as próprias lágrimas, mas dos irmãos só admitia o sorriso. Se via um olho mais caído, com um brilho estranho, tratava logo de contar uma piada ou rezar um credo. Sua voz tinha timbre de esperança. Curava mau humor, curava tristeza. Curava até o que não tem cura. Mas não curava doença. “Curador da carne é Deus“, João José falava quando passava em frente a um hospital. E dormia tranqüilo.
Um dia, o irmão Paulo acordou indisposto. Não sabia dizer o que era, nem João José. Não era coisa de se curar com palavra, nem com abraço ou consolo. Era coisa de Deus.
Mas a fé de João era realista. Ele sabia que Deus, aqui na Terra, custava dinheiro, e que dinheiro custava trabalho.
João saiu da cidadezinha, e foi atrás de Deus.
Chegando na cidade grande, João José se sentiu João. Da Silva. Típico e ignorante. E mudou a reza.
Se não dormia, trabalhava ou estudava. Se estudava, pensava em outro trabalho. Quando estava no outro trabalho, pensava nos estudos para o trabalho da cura de Deus.
João queria crescer. E cresceu. Em apenas um ano, João saiu da casinha da cidadezinha, foi para casa da cidade e finalmente, pro escritório da Multinacional.
João trabalhava, trabalhava, trabalhava e já não havia lágrimas para derramar. Mas também não tinha tempo para pensar nisso. Pensava em Paulo e na sua cura.
Há tempos não telefonava para ele. Cada ligação para a cidadezinha durava 5 minutos. Cada página para a Multinacional, 15. O dia era curto. Dinheiro. Cura..
Paulo doente. Pilhas de papel na mesa. Três zeros à direita no extrato. Não bastava. Trabalho. Paulo.
Deus custa caro...


Letícia Mueller

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