sábado, 29 de maio de 2010

Melhor Do Que Uma Serra


Ai que dorzinha que ela sentia no dedo indicador. Justamente no indicador, a sua melhor ferramenta para raspar formas de bolo, tirar tatu do nariz e cera do ouvido. O que seria dela sem aquele dedo?
Ó, Gabriela chorava só de imaginar. Havia coisas que não se podia fazer sem determinada parte do corpo, e o dedo indicador era o que mais necessitava. Não era como um pé, por exemplo, que a gente só usa pra andar. Afinal, Gabriela não só preferia engatinhar, como tinha plena consciência de que o fazia melhor do que caminhar. Logo, o pé era inútil.
Ou ainda os milhares de fios de cabelo, que só serviam pra mãe vir brigar (“Não penteou o cabelo de novo, menina? Vemcácomamãe, vem”), pra dar nó no gira gira, e pra menino puxar quando dá briga. De quando em vez, acontecia algo legal e caía chiclete no cabelo, mas isso era difícil. Gabriela daria graças se um dia acordasse e visse sua cabeleira sobre o travesseiro, como se ela tivesse os perdido todos.
Outra coisa inútil era o tal do nariz, que mais parecia feito pra levar bolada. Como acertavam o nariz da Gabriela! Ou era culpa das bolas, ou do nariz dela. Vai saber se os dois acusados não conversavam entre si e ficavam se provocando nas aulas de Educação Física:
- Idiota, idiota, hoje você não me acerta cara de cocô, dizia o nariz.
- Idiota é você seu, seu, seu, nariz de neném recém nascido, retrucava a bola.
- Neném? Eu já tenho sete anos! Emburrava o nariz.
E pronto, a bola aproveitava a deixa e ia direto pro rosto da Gabriela.
Mas tinha algo que a intrigava ainda mais: os seus dentes. Ô negocinho de lua! Um dia, lhe dava o prazer de comer uma bala bem dura de morango, mastigando-a com força e ouvindo o som alto do CREC CREC ecoando na sua cabeça, e no outro, a obrigava a triturar aquelas coisas nojentas como a cenoura, brócolis, rúcula e etc... sem contar que toda a vez, depois que comia, tinha que ficar horas perdendo seu tempo escovando os dentes. Se pudesse escolher, ficaria desdentada e faria uma papinha só com os seus pratos e sobremesas preferidos para comer todos os dias.
Não adianta. Gabriela poderia ficar horas tentando achar as utilidades de cada milímetro do corpo do ser humano e não encontraria nenhum que tivesse mais atributos do que o dedo indicador, justamente o seu pedaço que estava comprometido. Ela precisava desse dedo, até o negociaria com o médico caso fosse necessário. Faria qualquer troca, cobriria qualquer oferta.
O pior é que não bastasse a sua utilidade intrínseca, o tal fura-bolos ainda criava funções para partes inúteis, como o umbigo.
“Ai que delícia mexer o dedo no umbigo, ai que delícia o cheiro que fica lá dentrão do umbigo, ai que delícia colocar o umbigo pra fora”... Gabriela ficava louca com a combinação umbigo+dedo.
Mas, um sem o outro até que sobrevivia, mas o outro sem o um, era desvalidez na certa.
Gabriela foi falar com a mãe sobre a dor, já ameaçando fugir caso o médico quisesse arrancar o dedo.
- Olha mãe, eu não posso dá o meu dedo, tá? Se me entende num é? Então assim, se ele for arrancar meu dedo, eu saio correndo e a gente se encontra aqui em casa tá?
A mãe ouvia cada palavra da filha e concordava seriamente com a cabeça.
Quando chegou no consultório, Gabriela mal se mexia, atrapalhada com suas mãos dentro de um saco que estava dentro de uma bolsa que estava dentro de um casaco.
Ela olhou de nariz empinado para o médico, apesar de que não teria outra escolha.
Seu nariz batia bem no joelho do doutor.
Sem se dar ao trabalho de sentar, cerrou os olhos, arcou as sobrancelhas, estufou o peito, e disse, depois de encher os pulmões com bastante ar:
- Eis aqui o meu dedo.
E na ponta dos pés, colocou seu fura-bolo sobre a mesa do doutor, cheia de coragem.
Gabriela virando o rosto com medo de notar alguma reação do doutor, tratou de fechar bem os olhos, pra não ver se quer uma fresta do que estava acontecendo.
Enquanto isso, o homem examinava seu dedo, pegando-o, apertando-o, olhando-o de perto, cheirando, mordendo, lambendo.
O médico realmente analisava o indicador de Gabriela, e ela realmente estava com muito medo.
Quando sentiu que a consulta já estava chegando ao fim e que já era hora de ouvir o diagnóstico, a menina abriu os olhos lentamente, e antes de se virar totalmente para o doutor, olhou sua mãe e com uma piscadela, garantiu que o plano estava em pé.
Confirmada a fuga, Gabriela muniu-se de coragem, e mirando o homem gigante de jaleco branco, perguntou com a voz mais grave que poderia ter uma menina de 7 anos:
- O que eu tenho?
O médico mal teve tempo de abrir a boca e a menina saiu correndo pela porta a mil por hora, segurando seu dedo com a outra mão como se carregasse o coração do seu bichinho de estimação.
A mãe e o homem que ficaram para trás levantaram-se assustados e saíram atrás de Gabriela, mas não tiveram que ir muito longe.
Já a encontraram na porta da clínica, caída no chão, com os joelhos ralados, aos prantos e escondendo as mãos por debaixo da blusa.
- Mãe, tá doendo.
A mulher olhou para o médico, que imediatamente pegou em ambas as mãos da menina e examinou-as. Depois de cerca de 1 minuto, disse:
- Venha Gabriela, vamos voltar lá pra dentro.
Enquanto Gabriela olhava para os pés e a mãe lia uma revista na sala de espera, o médico solicitava duas talas. Para o dedo. Indicador.





Letícia Muller

Um comentário:

Anônimo disse...

Eu que tenho sobrinha de um ano e meio mal posso esperar para vê-la chegar a essa idade e se degladiar com dilemas simples da vida como este. Quem sabe eu consiga entender, me inspirar e escrever sobre infância com a sua qualidade, Fofulety.
Beijo.

Mario