sexta-feira, 16 de julho de 2010

A Melhor Piada Do Mundo


Hoje era dia de só alegria. Amélia já despertou cantando, dando pulinhos suaves e esboçando sorrisos para as paredes.
- Bom dia, Dona Branca! Como vai você?
E se virava para o extremo oposto do quarto:
- E você, Armário ? Dormiu bem?
Amélia não esperava a resposta. Corria para o pequeno espelhinho do banheiro minúsculo, engafinhado-se para caber ali dentro. Bom mesmo seria poder deixar seu enorme par de pernas do lado de fora, e entrar só com a cabeça, que apesar de também imensa, era o seu menor membro. Olhava seu rosto com cuidado, certificando-se que todas as sardas estavam em seus devidos lugares e que nenhuma tinha fujido. Tudo certo? Então era hora de trabalhar.
Percorria os corredores feito uma bailarina desengonçada, parecendo um louva-deus em meio a um vendaval. Caprichava no silêncio, pensando nos patrões dormindo bem ao lado, atrás das paredes finas que também descansavam a essas horas da matina. Amélia chegava na porta da cozinha, e embalava seu corpo com força para deslizar sobre o piso de cerâmica, surfando com suas pantufas. Manejar aquelas longuíssimas pernas não era trabalho pra qualquer um. Exigia prática e habilidade.
O fim do seu trajeto de deslize tinha de ser a cafeteira, em uma posição em que conseguisse tocá-la, sem esforço, se esticasse os braços. Se por o acaso, o embalo terminasse fora da área permitida, um centímetro que fosse, ela voltava para a linha de partida e tentava novamente.
O que mais gostava no café da manhã, era a cafeteira. Adorava sentar próxima a ela,e aproximar o ouvido para ouvir os borbulhos da água efervescente. Quando o café estava pronto, ela jogava-o fora, e fazia tudo de novo. Não mais que três vezes, pois ai dela se o patrão descobrisse o desperdício.
Meio entristecida, ela servia-se de um pouco de café, e em dias normais, comia duas fatias de pão com manteiga e uma fruta qualquer.
Naquele dia, não comeria nada. Salivava só de imaginar as delícias que degustaria mais tarde. Aliás, desde o dia anterior, quando sua tia a ligou e disse que seu tio estava morto e seria velado hoje, ela parou de comer. Mal se deu ao trabalho de jantar, até porque o velório estava marcado para começar de manhã, e se estenderia até o momento do enterro, no finzinho da tarde.
Amélia tomou seu café mais por obrigação do que por vontade, e com tanta lentidão, que os últimos goles, de tão gelados, fariam vomitar até o mais forte. Mas ela, distraída e pensativa, nem notou e bebeu até a última gota. Só estava esperando os patrões acordarem para dizer que hoje não poderia trabalhar.
Quando contou para Dona Joana, sua patroa, que teria de ir ao velório do tio, e portanto, ficaria o dia todo fora, não conseguiu conter o entusiasmo.
- Só você mesmo, Amélia... ficar feliz em velório.
A empregada fingiu estar envergonhada:
- Ai Dona Jo, e tem como não ficar feliz com tanta comida gostosa e gentarada reunida pra eu contá minhas piada? Pó dexá que eu trago um pedacin de misto pra senhora, viu?
E lá foi bailando Amélia para o seu quarto, já pensando na roupa que reforçaria a graça das anedotas.
Vestindo calças pantalonas vermelhas, um sapato roxo, e um blazer xadrez preto e branco, Amélia ficou satisfeita com o que viu no espelho e saiu correndo pegar o ônibus, com medo de se atrasar.
Chegando no velório, ela foi logo para a mesa de comidas. Primeiro, deu uma olhadela geral sobre todas as opções, e satisfeita, pegou a comidinha que estava mais a mão para poder, finalmente, passear pelo salão.
Com um pedaço de nega-maluca em mãos, Amélia andava com suas enormes pernas olhando para cada rosto que estava presente, e cada vez que seus olhos encontravam com os de alguém, lá ia ela, com um sorriso incoveniente e uma piada engraçadinha na ponta da língua.
Sua risada ecoava pelo salão, chamando a atenção até dos mais compenetrados.
Amélia tomou o lugar da melancolia. A morte já não era mais a estrela do local.
Ela não se importava com as lágrimas ou olhos fechados, e sim com as piadas e as guloseimas em suas mãos.
Andava de um lado para o outro, enroscando suas pernas em distraídos, derrubando os mais baixinhos e irritando os rabujentos. Quando cansava, ia para a mesa, enxia suas mãos com sanduichinhos, bolos, bolachas e balinhas, e voltava para o seu show.
Em uma de suas andanças, parou para olhar o seu tio dentro do caixão.
Apesar dos cabelos puidos e fininhos da velhice, os lábios franzidos, a pele flácida e o rosto pálido, ele demonstrava tanta serenidade que Amélia acalmou-se e deixou, sem querer, as guloseimas cairem no chão.
Ela lembrou-se do seu tio, de sua risada, seu jeito meigo e brincalhão de ser, e sentiu uma dorzinha no peito que fez uma lágrima escorrer dos seus olhos. Sentiu uma saudade tão forte, que quis logo voltar para casa. Tinha muito trabalho a fazer, louças para lavar, um banheiro para limpar, um chão para varrer...
As comidas e as piadas não tinham mais graça. Iria embora.
Quando já estava dando as costas para o tio, viu algo se mover. Assustada, olhou bem para ele, tentando achar o movimento, e notou que seus lábios tinham mudado de posição.Já não estavam mais flácidos e exibiam um sorriso tão discreto que só ela conseguiu notar.
Amélia tentou interpretar o gesto do tio, e conclui que deveria voltar a contar piadas para todos os presentes para alegrá-los.
Quando estava prestes a escolher alguém para divertir, viu que seu tio já não estava mais com aquele sorriso, bem pelo contrário. Ele parecia brabo, irritado, com as sobrancelhas cerradas.
Amélia voltou para perto dele, e o sorriso voltou ao seu rosto.
- Ai meu Deus! E se ele quiser que eu fique aqui pra sempre com ele?, pensou ela.
Pensativa, tentava achar uma resposta para o que acabara de ver.
- E se... boa. Florida tinha quatro cachorros que..
Ela contou uma de suas melhores piadas, a que fazia qualquer um rir, e alguns perderem o ar.
Fechou os olhos, cheia de expectativas, e olhou para o seu tio.
Em uma fração de segundo, ela conseguiu ver. Ele abriu um sorriso imenso, que exibiu seus dentes amarelados e sua garganta rosada. Toda sua face e seu corpo se comprimiram com a gargalhada muda, até que, de repente, ele voltou ao normal.
Os lábios voltaram a ser franzidos e o rosto voltou a ser pálido e sereno como antes.
Quem gargalhava agora era Amélia, que mais feliz do que nunca, pegou mais um pedaço de nega-maluca e foi para casa.
Já era hora de descansar.




Letía Mueller (retornando de lua de mel. Felicidades, Desaforada Fofulety!)

Nenhum comentário: