sábado, 7 de novembro de 2009

Castanho Indecente




Como que obedecendo a um comando automático, Camila abre os olhos no exato momento em que o sol majestosamente invade seu quarto, anunciando mais um dia de verão. Então, demoradamente, olha ao redor. Está tudo em ordem: a cômoda maple com suas caixas de MDF decoradas, sua coleção de pulseiras, a caixa de maquiagem, os brincos de argola que usara a noite. Ao lado, uma cadeira, na qual repousam a saia jeans e a blusinha turquesa. Boceja, preguiçosamente. Olha com calma para o painel cheio de fotos. Estão todos lá: as amigas Tatiana e Heloísa, os pais, irmãs, as colegas da faculdade, Thiago e... Otávio. Cada vez que olha aquela foto tem certeza absoluta que deveria ter tirado ela de lá há muito, muito tempo. Mas cada vez que pensa nisso, olha para os grandes olhos castanhos de Otávio e... desiste.
Num suspiro, levanta-se. Sabe que deveria estar mais contente, afinal, daqui a vinte dias, será uma mulher casada. Sabe que um turbilhão de coisas irá acontecer, que sua vida mudará. Meses de expectativa, milhões de coisas para organizar. É bem verdade que faltam alguns detalhes, mas sabe que a amiga Helô vai dar um jeito.
Nunca fez muita questão de casar na Igreja, mas Thiago, católico praticante, se opôs radicalmente quando ela lhe falou. "Capaz! A gente casa na Igreja, sim. Quer matar minha mãe de desgosto, amor"?
Não, não queria (pelo menos por enquanto). "Tudo bem, amor. Se é importante para você..." Normalmente, fazia o que Thiago lhe pedia. Adorava sua voz, seu sorriso. Thiago era calmaria em meio a tempestade. Era um porto seguro onde gostava de atracar. Gentil, a acompanhava em todas as ocasiões. Até na feira ou no shopping. E sem reclamar. Camila ficava maravilhada com aquilo, nunca conhecera homem assim. Conquistara todos da família: os pais, as irmãs, os amigos. Sabia agradar a gregos e troianos, por assim dizer.
Conhecera-o três anos antes. Para não fugir do clichê, eram diferentes em muitos aspectos. Enquanto Camila gostava de sair com os amigos, de viajar, de ir em festas, ler de tudo e de todos, Thiago era caseiro. O prazer de sua vida era ficar em casa, ao lado da família. Achava bobagem viajar, posto que poderia investir esse dinheiro em algo mais “produtivo”. Metódico, seu quarto era impecável. Cama arrumada, camisetas organizadas por cor, sapatos limpíssimos colocados lado a lado, na sapateira. Tinha lugar certo para sentar à mesa, lia livros de economia e filosofia – que usava nas longas conversas que tinha com o sogro, antes do futebol dos domingo. Aliás, futebol era sagrado. Afora isso, era uma boa pessoa.
Amava o noivo, disso tinha certeza. Não gostava muito das suas manias, mas Camila era bastante indulgente com Thiago. Afinal, ninguém é perfeito. Porém, não era tola, sabia que com o tempo e a convivência, tais manias iriam, muito provavelmente, aumentar. O que, consequentemente, exigiria dela mais paciência.
Levanta e vai para o banho, onde demora vinte minutos. Quando sai, enrolada na toalha branca, lembra que prometeu para Tatiana e para Heloísa ajudá-las na compra dos seus vestidos. E fazer compras com as melhores amigas é algo que não se pode perder. Correu para o guarda-roupa, tirou o vestido rosa retrô – hoje vai esquentar, é melhor não passar calor – quando fitou, mais uma vez, a foto de Otávio no painel, a olhá-la provocantemente, como (teoricamente) não se deve olhar alguém que vai casar com outro, daqui a apenas vinte dias. Indecente! Nem na foto consegue disfarçar os olhos abrasadores de quem sabe o que quer e sabe que irá conseguir, pensou Camila, num misto de carinho e indignação.
Otávio era o oposto do seu bem amado. Era daquelas pessoas cujos olhos transparecem a alegria de viver. Não gostava de mesmices, não pensava duas vezes antes de viajar, passear, ir ao cinema. Ih, Camila, certo estava Jorge Luiz Borges: “Disto é feita a vida, só de momentos”. Assim, aproveitava os dias, carpem diem. Zombeteiro, olha com olhos nada puritanos para Camila, sua colega de turma. Conversavam todas as noites, faziam trabalho juntos. Nos finais de semana não era raro que conversassem – "a maravilha da tecnologia une as pessoas, Cá. Aproveita e vem falar comigo..."
Envolvente. Se ela tivesse que escolher uma palavra para o definir, seria essa. Carismático, bom orador, culto – quando pensava em Otávio, os adjetivos eram múltiplos. Mas tudo isso ela administrava bem. Amava Thiago e não tinha a intenção de abandoná-lo. Não sentia insegurança ao lado de Otávio exceto... quando olhava seus olhos. Grandes, de um castanho, quase âmbar, não olhavam simplesmente. Eram capazes de ver, de ler os mais recônditos pensamentos de seu interlocutor, se assim desejasse. Ao menos, era essa a sensação de Camila, sempre que olhava nos grandes olhos cor de âmbar de Otávio.
Thiago era a calmaria. Otávio era a tempestade. Porém, há dois meses, inevitavelmente, acabara se envolvendo com o colega. E como imaginara, as noites com Otávio eram únicas. Criativo, gentil, ousado. Era o oposto do noivo, cujo tradicionalismo era evidente.
No início, sentia-se confusa e passava da vergonha para a revolta num instante. Carpe diem. "Tenho a vida toda para usufruir minha situação de senhora casada" – pensava, justificando-se.
Já não sabia o que fazer. O noivo, sempre a seu lado, falando animadamente sobre a cerimônia, a casa recém-construída, a viagem da Lua de Mel. E tudo isso ela ouvia com interesse redobrado por conta da culpa que sentia. Jurava para si mesma que amor é mais importante que tudo. E que nunca mais falaria com Otávio, aquele grandecíssimo idiota.
Os dias transcorreram rápido, muito rápido. Camila agora mira-se no espelho, extasiada ante a própria beleza. O vestido caíra-lhe especialmente bem. "Que bom que pude me arrumar na casa da Helô... amigas são indispensáveis na vida da gente", pensou. Daqui a poucas horas, numa cerimônia, tornar-se-á esposa de Thiago. "Calmaria. É disso que preciso. Casada! Com o homem que amo..." Então, como se lembrasse repentinamente que não estava sozinha no quarto, sorriu para os abrasadores olhos de Otávio, que fitava-a entre deslumbrado e divertido, da cama onde há pouco ela se levantara.





Rubia Carneiro

2 comentários:

Anônimo disse...

Incrível o grau de empatia e de minúcia com que você descreve a conciliação (ou conflito) entre o universo físico e o universo íntimo da personagem, parece até que você vivenciou a história, Rubia. Parabéns.
Em certos momentos, faz lembrar aquela do Renato: "Veja só esta manhã tão cinza / A tempestade que chega é da cor dos seus olhos castanhos".
Beijo.

Mario

Karime disse...

E quem já não viveu uma situação assim?
Adorei! Bjo