sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Encantos e Desencantos – Parte 2



Meu primeiro primeiro dia de aula, após quase 5 primaveras completas, foi amavelmente registrado por minha mãe. Na foto, uma menininha de 1,15 metro de altura, de cabelos presos em um rabo de cavalo alto, exibia um sorriso dentuço de ansiedade e grandes joelhos ossudos parcialmente cobertos por um uniforme azul piscina. Ao seu lado, um menino de 10 anos segura forçadamente a mão da irmã e não consegue esconder o ciúme totalmente a mostra no seu bico de birrento, enquanto sua mãe, com a câmera na mão, não pára de dar recomendações de poses para o seu casalzinho.
Sorte que o ritual só veio a se repetir algumas semanas depois, quando eu, ainda menininha de 5 primaveras e 1,15 metro de altura, tive que ir à aula fantasiada para um dia de brincadeiras. De pernas finas a mostra em um vestido de Pedrita, eu balançava meu cabelo de um lado para o outro para ver se a tiara em forma de ossinho iria cair. Não caiu.
As fotos eu tenho até hoje e muito dos outros bons momentos que não foram fotografados, estão registrados em minha mente com a mesma verossimilhança que um filme de alta resolução.
A imagem de minha professora mais querida, por exemplo, vive intacta na minha memória como se ela fosse minha vizinha e eu continuasse a vê-la todo dia, passeando em frente de casa com seu cachorro e me dando bom dia com voz costumeira.
Até hoje, quando conheço alguém homônimo a ela, lembro-me de uma mulher altíssima, de pernas longas e esguias, cabelos compridos e lisos, e o mais marcante: um enorme topete adornando seu belo rosto delicado. Idolatrava aquela professora a tal ponto que deixava o meu cabelo crescer para ficar igual ao dela, e pedia, diariamente, para que minha mãe fizesse um topete tão lindo quanto o da Ana Claudia.
E esse carinho era recíproco. Desde o início das aulas, a professora encantou-se com meu jeito alegre e desinibido de criança. Além de educada, eu era prestativa e inteligente, não chorava de saudades de casa e obedecia a qualquer pedido. A criança perfeita.
Um dia, estávamos na sala de aula pintando desenhos com giz de cera, quando a professora Ana Claudia falou pra arrumarmos nossos materiais porque iríamos assistir a um filme no anfiteatro. Contente com a notícia, guardei minhas coisas com tanta pressa que a metade dos gizes caiu ao chão. Agachei-me para pegar tudo e, quando voltei, a sala já estava vazia.
Fiquei duas horas trancada na sala, já sem mais nenhuma reação nova para inventar. Já havia chorado, tentado dormir, gritado por ajuda, e nada. Só me restava esperar.
Não sei se por falta de criança ou por peso na consciência pelo ocorrido, ela, alguns meses depois, me escolheu para ser daminha de casamento juntamente com um outro colega de classe.
Senti-me honrada, e me divertia com os preparativos para a cerimônia. Adorava os ensaios, cuidava para decorar todas as instruções e, a cada dia que passava e o dia da festa se aproximava, eu ficava mais e mais nervosa.
Até que o dia chegou.
De unhas feitas, cabelo arrumado com um enorme arranjo prendendo o topete – ainda diferente do de Ana Cláudia, pulseirinhas e brincos de ouro, eu desfilava pela igreja disfarçando o nervosismo. O sapatinho, apertado em meus pés, e o vestido de babados pinicando cada centímetro quadrado da minha pele, não me desanimavam e me deixavam ainda mais concentrada no meu objetivo de, por nada no mundo, deixar as alianças caírem, tropeçar, cair, ou fazer qualquer outra coisa vergonhosa.
Como eu já estava preparada para entrar na igreja a qualquer instante, o momento em que a cerimônia foi iniciada aliviou minha tensão. Não andei nem tão rápido e nem tão devagar, como o ensaiado. Não esqueci de sorrir em nenhum momento e não houve nenhuma ameaça de tropeços ou tombos. Tudo havia ocorrido como o esperado.
Já no altar, eu estava isenta de preocupações. Meu único papel, a partir daquele instante, era esperar bem quietinha até que a cerimônia chegasse ao fim. E eu havia jurado pra mim mesma que faria isso com maestria.
No começo, eu prestava atenção a todas as palavras do padre, até que essas começaram a se misturar com alguns sons vindos dos convidados, e eu já não conseguia prestar atenção em nada. Meus pés, transbordando dentro dos sapatos novos, latejavam sincronicamente enquanto eu me apoiava cada vez em uma perna. Discretamente, óbvio. O vestido parecia estar recheado de pulguinhas me dando mordiscadas incessantes e minha cabeça doía repuxada por aquele arranjo tentando formar um pseudo topete.
Porém, até ali, as torturas estavam controláveis, mas a situação passou a ficar crítica quando minha bexiga começou a pedir por banheiro. Começou pedindo mansinha, bem baixinho, mas, como que braba por eu não estar atendendo seu pedido, ela passou a levantar a voz e partir para a ignorância. Chutava minha barriga com ódio, gritando: Deixa eu me esvaziaaaaar! Eu era obrigada a fingir que não a escutava. Não poderia sair do altar, sob o olhar de mais de 200 pessoas, nem sob risco de morte.
Mais do que nunca, eu queria calar a boca daquele padre. Meus pés, minha pele, minha cabeça, minha bexiga. Ah! Mas eu não tinha absolutamente nada a fazer, a não ser esperar até que a missa acabasse.
E nada de a missa acabar. Desesperada, cogitei algumas vezes em pedir licença e sair, mas a minha consciência falou mais alto. Minha mente guerreava contra meu corpo sob a paisagem de uma igreja e ao som de um sermão, e eu supostamente, deveria agir como juíza durante essa batalha.
Como eu havia ficado em cima do muro, sem declarar nenhum veredicto, os dois inimigos decidiram a luta sozinhos. Repentinamente, já sem forças para nada, senti um calor descer sob minhas pernas e molhar minha meia-calça até entrar sob os sapatos apertados. O líquido descia sem cessar, ao mesmo tempo em que aliviava minha barriga, e corava minhas bochechas.
Quando o líquido parou de escorrer, as lágrimas desceram sob meus olhos e o padre anunciou o encerramento da missa.
Minha vergonha era tanta, que não saí do lugar temendo que alguém visse a poça deixada para trás.
Logicamente, minha mãe não aceitou meu pedido de total sigilo sob o ocorrido, e contou tudo a Ana Claudia. Alguns meses depois, não sei se por educação ou por peso na consciência pelo ocorrido, ela aceitou o pedido da família em ser minha madrinha.
Ana Claudia, casada, deixou de dar aulas no meu colégio e, talvez por falta de problemas ou situações inusitadas a que se desculpar, não me ofereceu mais honra alguma.
Perdi a professora e a madrinha, mas hoje eu tenho certeza que meu topete é infinitamente mais bonito que o dela.



Letícia Mueller

2 comentários:

Anônimo disse...

Putz, Letícia, li compadecido esse post, você deveria transformar suas histórias pessoais em roteiro. Não sei o que é mais prodigioso, se a sua memória ou a sua capacidade em transpor o leitor para dentro da sua pele durante a narrativa.
Beijo, Fofulety.

Mario

Karime disse...

É verdade, tua narrativa é aravilhosa.
Achei um amor a história. Eu também já fui daminha de honra, mas tinha 10 anos. Minha mãe inventou de deixar meus cabelos crespos. Quase morri de raiva. Bjos, Leticia.