sexta-feira, 25 de junho de 2010

Amigas de sangue


Seu nome era Riberclei. Sem idade, sem família, sobrenome, ou origem. Até lembra do dia em que o homem de coturnos e bafo quente pediu sua identidade. Lembra mais ainda do que veio em seguida, da ardência do cassetete, conseqüência de uma resposta sincera: eu não tenho.
Apesar de não recordar o que fazia antes de ser abordado, sabe exatamente o que começou a fazer em seguida. Ainda com sangue escorrendo pela boca, sentindo a ausência de um dente que acabara de ser arrancado, Riberclei, tomado pela fúria, avançou sobre o policial e antes que qualquer um percebesse sua intenção, torceu-lhe o pescoço como a uma toalha encharcada. Não tentou correr.
Em menos de meia hora, Riberclei conheceu seu lar de uma vida toda.
Atrás das grades, dormindo sobre o concreto frio, de cara para o chão, ele fazia amizade com as aranhas. Reconhecia-as uma a uma, dava boa noite, perguntava sobre a vida. Não era louco não, só achava que lá dentro daquele lugar, dentre carcerários e prisioneiros, os insetos eram a melhor companhia para uma conversa descontraída.
Comia com gosto a sopa velha e o pão embolorado, a água amarelada e suco vencido. De quando em vez, lembrava-se de separar umas larvas para suas aranhas e aí era só festa. Vinham todas comemorar, e o Riberclei ficava deitado, de cara para o chão, observando feliz a algazarra.
Mas o banquete mesmo, a verdadeira festa de arrombo, o grande encontro, acontecia quando ele acordava de boníssimo bom humor, pronto para causar a alegria geral. Riberclei erguia os braços, abrindo o sorrido preto de tártaros e o cheiro ruim de podridão que nem os próprios companheiros de cela agüentavam. Mal despertava, os outros se encolhiam nos cantos mais afastados do cubículo numa tentativa de se camuflarem com a parede.
Mas Riberclei não selecionava. Não cabia a ele escolher. Não cabia a ele tomar tal decisão. Seria o mesmo que ir a uma lanchonete e deixar que outro cara escolhesse em seu lugar um x-salada, ao invés de um x-bacon.
Humm, bacon... Riberclei olhou para o chão. Do último verme que ele deu às aranhas, só restava a gosma das tripas indigeríveis. Algumas, ao verem o mestre, já se agitavam freneticamente e pareciam dançar de alegria. Em menos de 10 segundos, dezenas de finas perninhas se mexiam de lá pra cá, esperando o presente de Riberclei.
Ele, ansioso, lembrava de como tinha sido das outras vezes e seu olho brilhava de segundas intenções. Em pé, no meio da cela, Riberclei amedrontava os companheiros encolhidos na parede, aproximando-se do seu alvo como quem está faminto.
Ele lembrava de como havia sido com sua última vítima. Um golpe certeiro contra a parede, o corpo desfalecendo, o sangue se espalhando sobre o concreto frio, e as aranhas serelepes a passear sobre o cadáver e explorá-lo com sagacidade.
Riberclei olhou nos olhos de sua próxima vítima, e deliciou-se com o medo exalado por sua íris. Ele era uma lenda viva, e imortal. Até os cárceres o temiam. Aliás, uma das coisas de que Riberclei mais se orgulhava, era de ser amigo única e exclusivamente das aranhas. Amigas fiéis e inseparáveis. Elas mereciam uma retribuição, e ele a dava com carinho.
Riberclei aproximava-se de seu escolhido lentamente, quando decidiu atacar e empurrou seu corpo com violência contra a grade. A vítima não caiu, e tentou revidar, mas a sua força era insuperável. O homem tentava se desvencilhar das mãos de Riberlei, mas parecia impossível. A mão grande do assassino agarrava aquela cabeça e a batia contra o chão, formando uma enorme mancha de sangue que já animava as aranhas. Ele já sorria, declarando-o morto para alegria de suas companheiras, quando é atingido na cabeça por algum objeto cortante. Mal tem tempo de olhar pra trás para se defender, quando é atingido novamente.
Com o rosto sobre o concreto, Riberclei sente o gosto do próprio sangue, e ainda tem tempo de ver suas arainhas subindo sobre o seu corpo. Todas serelepes.


Letícia Mueller

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