sexta-feira, 4 de junho de 2010

O Dia de Sair Mais Cedo


Há mais ou menos oito anos, em algum dia da semana, eu acompanhava junto com meus colegas o ponteiro dos relógios se arrastando lentamente sem nunca chegar no horário esperado. Nos mostradores, os números se misturavam com as meninas super-poderosas, o ursinho Pooh ou a Barbie, e no dos meninos, com o Homem-Aranha e os Power Rangers. Éramos crianças aflitas, porém contentes, pois naquele dia o tão esperado momento da professora dizer “até amanhã turma” , chegaria mais cedo do que o normal.
A própria professora estava feliz com isso. As outras turmas estavam, a escola estava, o bairro, a cidade, o país todo estava feliz porque iríamos embora mais cedo.
Era contagiante e inevitável. Aquele era o dia em que até o mais rabugento dos homens acordava com o coração batendo mais acelerado. Para mim, a data funcionava quase que como um Natal. As brigas e picuinhas eram provisoriamente deixadas de lado, famílias que não se viam há muito tempo aproveitavam para se reunir, contas e problemas eram esquecidos em razão de algo aparentemente “maior”... Na minha casa, até uma ceia era feita. Peru, chester e tender eram substituídos por pães de queijo, salgadinhos e por qualquer outra coisa que fosse prática e não exigisse muito trabalho.
Era dia de festa. Ninguém prestava atenção no que a professora dizia, se bem que talvez até ela não quisesse ser ouvida. Eu imaginava se não estava atrasada, se as coisas lá em casa já não estariam prontas e se quando eu chegasse, já não haveria mais nenhuma comida ou lugar no sofá para mim.
Quando após muita tortura, nós éramos dispensados, uma avalanche corria em direção aos portões da escola com a vista atenta, procurando pelo carro da mãe ou do pai. Ninguém se despedia de ninguém, bastava um grito forte de “AE” para que todos entendessem o recado, e entrassem o automóvel.
O trajeto para casa parecia mais longo do que normal. O trânsito ficava lotado, com pessoas businando, fazendo ultrapassagens perigosas e correndo para chegar logo em casa. O rádio ligado era uma escolha unânime entre todos. Nas calçadas, vendedores ambulantes fosforescentes pulavam e berravam frases animadoras e positivas, sempre com um imenso sorriso no rosto e o bolso que engordava um centímetro a cada meia hora.
Assim que eu chegava em casa, já ouvia as vozes e risada da minha família. Quando me viam, era uma festa:
“ Noossa, como você cresceu!” , da irmã da minha mãe.
“ Como foi a escola?”, do primo sério.
“ E esse cabelão comprido, não quer trocar comigo?”, do tio careca.
“ Gente, ela tá a cara do pai”, da tia avó.
E assim por diante. Mas, bastava um som, um único som, de menos de um segundo, para que o silêncio literalmente reinasse na sala. Os que tinham acabado de colocar comida na boca, agüentavam firmes e deixavam o alimento amolecer no céu da boca até terem a garantia de que se mastigassem, nada seria ouvido.
Em momentos estratégicos, eram permitidos alguns rápidos comentários, porém, sempre para expressar sentimentos, e nunca opiniões. Era uma regra, e quem a infringisse, seria duramente banido com um xingamento e até mesmo, dependendo da situação, do direito a cerveja e refrigerante.
Mas eu era esperta. Sentava-me no meu cantinho, com meu copo e meu prato abastecidos, e ficava de olhos vidrados, sem me mexer ou falar nada. Tenho orgulho disso até hoje, por nunca terem me tirado a Coca.
Para não torturar ninguém, tinham ainda os 15 minutos de pausa, em que o silêncio dava uma trégua e entrava novamente a gritaria. A única condição era: quem quiser conversar, que vá lá fora.
Eu sempre achei meio esquisitos os que não saíam da sala.
Imagina, ficar duas horas sem falar nada? Só gritando, reclamando, xingando e comemorando por pouquíssimos segundos? Credo.
Passado o tempo do intervalo, todos voltavam para o aposento, sentavam-se em seus devidos lugares e, ao menor ruído, eram repreendidos com o clássico SHIIIIIIIIIIII! Era hora de prestar atenção.
E tempo vai, tempo vem, bola vai, bola vêm, os pães de queijo minguavam e chegava o fim da festa. Alguns diriam que ela mal começara, e se despediam dizendo qual o próximo destino. Outros, ainda, até esboçavam um sorrisinho, mas bastava uma segunda olhada para notar seus olhares desanimados.
Mesmo com a taça em mãos, a festa chegava ao fim.
Uma semana depois, com a turma calada e a professora aplicando prova, eu me distraía com o esmalte descascado azul e amarelo, metade na minha boca e metade esperando pra ser roído.



Letícia Muller

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