sexta-feira, 18 de junho de 2010

Trevisan em Poucas e Boas


Chico sai de casa, deixando família e lugar na mesa para trás, em busca de uma cidade chamada Nápoles. Passa a vida em Curitiba, às margens do Rio Belém, sonhando com o local, se esgueirando da realidade, contraindo tifo, pneumonia e tristeza e morando de pensão em pensão.
Tudo isso em apenas 3.585 caracteres, muito bem utilizados por Dalton Trevisan no conto “A Pensão Nápoles”, extraído do livro “Em Busca de Curitiba Perdida” (Rio de Janeiro: Record, 1992, 90 páginas, R$ 28,00). Não fosse a narrativa densa e envolvente, a história passaria despercebida, mas é justamente o incômodo causado pelas entrelinhas que leva à reflexão e à ânsia de uma releitura imediata. O conto de apenas uma página é multiplicado pelo próprio leitor e caso se transcrevam todas as teorias, pensamentos e emoções geradas durante a leitura, um romance poderia ser escrito.
“A Pensão Nápoles”, como todos os contos de Trevisan, é econômico em palavras, mas não em complexidade. Chico, o personagem que vive em razão de um único sonho, passa sua vida a correr atrás do inexistente e a buscar o que não tem volta. Porém, quando enfermo e em estado de delírio, ele é tomado por uma sanidade às avessas que o faz enxergar o cerne dos problemas de sua vida e a, pouco a pouco, enxergar a verdadeira realidade. Mas talvez já fosse tarde demais.
Chico parece uma criança fantasiada em uma vida medíocre de adulto. Uma vida suja, depressiva, triste e ilusória, de alguém que sabe que errou e continua persistindo no erro, mais por falta de opção do que por outro motivo.
Mais do que apenas mais uma obra de Trevisan, a Pensão Nápoles é um aviso aos sonhadores para que mantenham os pés no chão, saibam exatamente o porquê de seus sonhos e tomem cuidado para não serem ultrapassados por eles na estrada da vida.
É um estudo literário sobre um simples cidadão que por um erro infantil, teve sua vida naufragada pelos próprios anseios.
“A Pensão Nápoles” é um passatempo para se refletir, por horas e horas.



Pensão Nápoles

Desde que aportou a Curitiba, às margens do rio Belém, sempre nas unhas o barro amarelo. Para ser feliz deveria, menino, ter pescado lambari de rabo vermelho. Sonhava fugir para outra cidade – ah, Nápoles!
Escriturário, noivo, bigodinho, morou em todas as pensões: Primavera, Floriano, Bagdá. Definhava ora na sórdida espelunca de nome pomposo, ora na salinha escura do escritório, a espirrar entre o pó dos papéis. Eterna promessa de ano seguinte aumentarem o salário – não podia esperar mais um ano. Perseguia o voo das moscas, contava as rugas da testa do gerente, errava as contas e, ao receber a correspondência, indagava ao carteiro:
– Alguma carta de Nápoles?
Sabia o que era – o chamado das janelas. Em vez de partir, mudava de emprego, noiva, pensão. Respondia ao primeiro anúncio de – Precisa-se moço lugar de futuro. O futuro? Outra rua de Curitiba, plátanos antigos na calçada, solteironas à janela, rio Belém dos quintais miseráveis, um moleque atrás do lambari de rabo vermelho.
A salvação era casar, escapulir para o outro lado da cidade, onde o rio não chegasse – com as chuvas alagava os quintais, cobria os sapatos de lama, os sapos coaxavam na cozinha. Irrompia, sem aviso, sob os pés dos amantes distraídos. A prefeitura ignorava-lhe o curso subterrâneo; rio de pobre, não fora o Belém, com que água as mães dariam nos piás o banho de sábado?
Trinta anos, magrinho, bigode preto, Chico fugia do rio. Era moço triste. Naufragou com seus trastes na pensão Nápoles, não a escolheu pelo nome. Condenado às pensões baratas que margeiam o rio, partilhando o tifo preto do rio Belém e agora sem emprego. Diante de uma janela, o vento da viagem arrepiava os cabelos do peito magro:
– Na minha idade, já viu, o que Alexandre Magno...
O outro olhava-o com espanto.
Não fosse o rio... – em cueca na cama, limpando sob a unha uma sombra de barro.
Com o tifo até a noiva perdeu, ele sempre noivo! Não conseguia dispensar uma noiva na sua solidão. Breve namoro, entrava na sala, elogiava o café com rosquinha. Domingo era certa a galinha com vinho. Uma casa para se abrigar à noite, em vez de correr na garoa. Moço sem futuro, a noiva devolvia o anel.
Depois do tifo preto a pneumonia. Tardes alucinantes de febre, Chico se lembrava do pai. Severo, não admitia riso. Quando fugiu de casa imaginou que nem lhe desse pela falta. Nunca escrever, informando o endereço, na ronda das pensões. Tarde demais soube que o velho não deixou retirar seu guardanapo da mesa. A mãe colocava mais um prato, assim viesse todos aqueles anos almoçar e jantar em casa. De noite, o pai subia ao quarto do rapaz: Chico, Chico, você voltou? Morreu antes que o filho visitasse a família. Agora sonhava com o velho, ao lado da cama: Chico, veio para casa, meu filho?
Se ao pai matou, às noivas mal não fez. Oh, as noivas de Chico – a todas amou! Nem uma entendeu que não queria ser enterrado com os pés no rio Belém. Propunha fugirem para outra cidade. Qual das ingratas confiou no seu amor? À noite rondava-lhes a casa, todas dormiam, esquecido na garoa fria.
Em junho é a garoa o céu de Curitiba. Sob a janela de uma ex-noiva começou a espirrar. A dona da pensão Ali Babá não o quis com aquela tosse. Escondido dos hóspedes, retirado para a enfermaria coletiva. Aquecia-se atrás da vidraça no raio de sol, os serventes abandonavam uma cama vazia no pátio – que fim levou o doente?
Depois do tifo preto e da pneumonia a pensão Nápoles. O nome não o deixava dormir.
– Se embarcasse na Santa Maria, na Pinta, na Niña?
Cuspia lá da janela, cuspia sangue contra o rio.
– Não tem mar, Chico, na tua Curitiba.






Letícia Mueller

Nenhum comentário: