domingo, 20 de junho de 2010

Rebecca


Seu sorriso em larga escala magnetizava os clientes, desviando a atenção das exageradas cifras de consertos de arruelas que se tornavam verdadeiras reengenharias da sonda lambda. Rebecca se insinuava em pose sedutora entre chaves de roda e correias dentadas, entre a graxa dos mecânicos e a saliva dos visitantes. E seu corpulento dono e admirador nunca a desprezava, apesar do progressivo amarelado da imagem que nem mesmo uma boa camada de verniz UV protegeria da fuligem dos motores engasgados pelo mau combustível e pela irregular troca de óleo. Tratava-a com a mesma deferência com que a mãe e a avó se devotavam a Santa Edwiges, só faltando beijar a imagem quando chegava na oficina às oito da manhã. Romildo tinha certeza que jamais teria uma mulher como aquela em suas mãos calejadas, pois seu corpo robusto e desajeitado já se confundia com o estado de ferrugem dos veículos que reabilitava para as ruas. Sentia-se um geriatra das quatro rodas, só Rebecca insuflava jovialidade naquele ambiente de tédio regado a óleo diesel. Há seis meses arrancou discretamente a página de uma revista da sala de espera do dentista e a batizou de Rebecca. Colou-a com fita durex na parede enquanto repetia seu nome com a boca inchada pela perda do dente siso. O apelido pegou, os colegas passaram a chamá-la de Rebecca, tratando-a como integrante ilustre daquele painel repleto de divas de revistas masculinas. Tentou mudar seu nome quando a esposa quis tornar homônima a filha recém-nascida, mas já era tarde, ninguém iria se referir a ela como Cassandra ou Ilza. Acrescentou um “c” na sua musa de papel para diferenciá-la de seu anjo de fraldas, escrevendo o nome com pincel atômico na base da foto para que ficasse flagrante que não se tratavam da mesma pessoa. Mas Rebecca também gerava gozação de mecânicos e visitantes, e isso por um motivo simples: não estava nua. Enquanto as demais escancaravam seu sexo em poses ginecológicas, Rebecca era contida, recatada e... vestida. Aliás, excessivamente. Usava um vestido amarelo, flor da mesma cor no cabelo e até luvas. Certo, sua bunda e coxas ficavam à mostra, mas estava de calcinha, o que para o grupo era algo absolutamente inconcebível. Uma afronta. Se pelo menos fosse fio dental... Entravam em consenso quanto ao fato de ser aquela uma homenagem aos borracheiros, pois a moça estava trocando um pneu. Ao fundo havia um cartaz com texto em inglês que nunca entraram em acordo se era anúncio de churrascaria ou de posto de gasolina. Mas não entendiam, com tantas mulheres totalmente nuas e desinibidas, o que havia de interessante naquela moça onde se cobria praticamente tudo. O que Romildo viu naquela imagem que o fez furtá-la da mesa de centro de seu dentista, cuidando para dobrá-la sem amassar, escondendo-a dentro do casaco durante todo o tratamento de seu dente sádico e colando-a bem ao centro do painel das Rainhas da Graxa? Seria ela parecida com uma ex-namorada? Ou quem sabe o alento de seu olhar extasiante lhe aliviou de tal forma da dor cravada na mandíbula que resolveu deixá-la de prontidão na parede para o dia em que precisasse novamente de sua anestesia estética? Ninguém sabia e ninguém entendia. Por diversas vezes tentaram substituir Rebecca por uma Shirley de piercing clitoriano ou uma Isadora inflada de silicone, mas Romildo nunca o permitiu. Ao ficarem cientes de tanto apreço, os colegas passaram a usar Rebecca como motivo para fazer troça com Romildo: Tércio ameaçava de utilizar aquela página furtada no dia em que faltasse papel higiênico de novo na oficina; Ciro costumava alardear que iria devolver a imagem ao dentista, pois era seu legítimo dono; Sidney batucava com o torquímetro de estalo na parede, fazendo de conta que a qualquer momento iria acertar com a ferramenta na imagem de Rebecca (sempre batucara ali, mas, depois que a moça de cabelos pretos havia sido fixada naquele ponto, o propósito deixou de ser musical e passou a ser sádico); e Joelson era o mais cruel, costumava brincar de “emprestar a Rebecca”, dizendo que iria levá-la para dar uma voltinha no banheiro, mas que ela voltaria intacta, “só que meio grudenta, sabe?”, arrematava rindo sem deixar o cigarro cair do canto da boca. Romildo o achava o mais asqueroso do quarteto, constantemente limpando as mãos e a nuca numa toalhinha com bordado do Perna Longa que nunca lavava e fazendo comentários sexistas das mulheres que passavam pela frente da oficina, sempre com seu bordão de que “essa é boa pra aliviar a pressão”. Romildo pensou em emoldurar Rebecca em um sanduíche de vidro, mas o serviço da vidraçaria era caro e seria motivo de escárnio ainda maior de seus pares, pois achariam excessiva frescura. Os mecânicos acabaram se conformando com a obsessão de Romildo, sendo que, com o tempo, aliviaram as brincadeiras e ninguém mais se arriscava sequer a tocar na imagem de sua musa. Uma coisa todos da oficina admitiam: o rosto de Rebecca era, de fato, de uma energia hipnótica, tratava-se de um desenho que ninguém conseguia encontrar paralelo na vida real. Acreditavam que, das mulheres que conheciam, apenas a “Ruivosa” poderia lhe oferecer rivalidade nos traços da face e na sinuosidade do corpo: era uma vizinha que morava em casa de parede contigua à oficina, e sempre reclamava do barulho dos equipamentos usados nos reparos automotivos. Invejavam Romildo por ele ser o único que conhecia sua casa por dentro, já que eventualmente era chamado para consertar o chuveiro ou algum eletrodoméstico da irritadiça e bela mulher. Mas a inveja acabava por aí. Todos consideravam Romildo um troglodita acéfalo (logicamente não usando esses termos, mas sim seu significado). Os mecânicos sabiam estar naquela profissão por carência de dotes intelectuais, mas Romildo era, para todos, aquele que nasceu para a função e não sairia dela nem com 50 anos de supletivo. Porém, também sabiam admitir que era o mais trabalhador de todos. O único que ficava depois do expediente reparando os carros que deixara pendentes de algum conserto e que o dono necessitaria na manhã do dia seguinte. E foi, por reconhecimento a tantas horas extras não pagas, que Seu Jair, o dono da oficina, premiou Romildo com um presente absolutamente insuspeito no dia em que completou dez anos de casa. Ao final do expediente, chegou na oficina um carro tripulado por uma mulher que, ao sair, revelou-se idêntica a Rebecca: usava o mesmo vestido amarelo, a flor no cabelo, as luvas brancas nas mãos e o salto alto nos pés. Ostentava o mesmo penteado, a mesma maquiagem, o mesmo tom negro nos cabelos, tudo. Foi ovacionada de imediato por todos os mecânicos, que logo parabenizaram Romildo pela década de bons serviços prestados, e saíram sem mais delongas para deixar o homenageado a sós com seu presente. No banco de trás do Maverick vermelho em que a pseudo-Rebecca chegou, fizeram um sexo rápido e sem se despirem. Ambos pareceram cumprir tabela para a função que contratante e colegas mecânicos lhes atribuíram. Enquanto levantava a calcinha branca e acendia o cigarro fora do carro, Rebecca cover se aproximou da imagem que inspirou a confecção de seu traje e indagou qual o motivo de tanta admiração por aquela mulher, ao ponto de seus colegas, para enviarem a referência à costureira, terem de fotografar a pin up por saberem não poder tirá-la daquele posto que era seu santuário. Foi então que Romildo resolveu fazer sua revelação. Descolou do durex aquela página já enrugada pelo tempo e deixou surgir um pequeno buraco na parede. A prostituta deu o cigarro para Romildo segurar e se aproximou, fechando um olho e encostando o outro no orifício. Foi quando avistou, do outro lado, a “Ruivosa”, a vizinha pela qual todos os colegas mecânicos salivavam, tirando a roupa para tomar banho. Um ritual que se repetia sempre no mesmo horário, sempre depois do expediente da oficina. Romildo explicou que tinha medo que os demais mecânicos descobrissem aquela passagem secreta para o paraíso, pois iriam botar tudo a perder com fofocas, alarde na vizinhança e até cobrança de ingressos para quem quisesse apreciar. Então, teve uma ideia quando estava no dentista, usando a imagem da pin up para camuflar sua conexão com aquele universo dos sonhos. Ele percebeu ser possível avistar a vizinha pela oficina quando, ao ir em sua casa para consertar o chuveiro, notou o som do torquímetro de estalo de Sidney sendo batucado do outro lado da parede. Com um estudo de angulação adequado, uma furadeira e o encontro de uma posição que não ficasse na linha dos olhos da vizinha, foi só partir para o trabalho braçal e voilà! Admirada com a engenhosidade do mecânico, a falsa Rebecca recuperou seu cigarro daquela mão de dedos grossos, deu a última tragada, prometeu guardar segredo e foi embora a bordo do Maverick. No dia seguinte, os mecânicos mal abriram a oficina e já foram indagando Romildo sobre a aventura da noite anterior com sua musa da parede. Ele sorriu timidamente e desconversou, indo até o portão de entrada para continuar a beber seu resto de café enquanto apreciava o trânsito. Ao seu lado, Joelson equilibrava o cigarro no canto da boca quando passou à frente da dupla a “Ruivosa”. “Essa é boa pra aliviar a pressão!”, disse ele enquanto esfregava a toalhinha do Perna Longa no rosto e nas mãos, a mesma na qual Romildo aliviava a pressão todos os dias após o expediente.

Mario Lopes

2 comentários:

Anônimo disse...

Aprecio textos assim, rico em detalhes.. Pode-se imaginar e sentir o ambiente, o cheiro, a presença das personagens...

Anônimo disse...

Obrigado, só pena você ter esquecido de assinar. rs

Mario