quinta-feira, 24 de junho de 2010

Metamorfose


Nana nasceu rubra. O primeiro manto era vermelho, trazendo o brasão da família. Seu choro forte não deixava dúvidas: a menina era guerreira. Chegou ao mundo antes da hora, torcendo sua mãe de dor que, enquanto o sangue escorria por suas pernas, gritava enlouquecida e agarrava a enfermeira pela gola.
À medida que foi crescendo, Nana foi trazendo consigo sua paixão pelas cores fortes. Extremista, riscava e rabiscava nos seus folhetos, desenhava os seus sonhos, atravessava mundos com seus lápis de cor. Ai de quem a tirasse dos seus sóis, vulcões, fitas, flores, corais intensamente vermelhos, antes que os finalizasse, era uma gritaria. A paixão a movia, paixão por tudo.
Já era mais menina quando, um dia, simplesmente enjoou do vermelho. Seu calor já não a mantinha fixada e sentiu-se seduzida pelo azul, da echarpe de dois tons da tia. Percebeu que o azul tornava-se mais forte se o vermelho se misturasse apenas em espaços determinados e encheu a mão de tinta. E assim, descobriu a sutileza e a serenidade da cor fria e do poder, experimentou a leveza. Tratou de retratar céus, peixes, babados, flores, rendas, tudo em azul. Já não trazia tanta força no traço, era mais branda.
Ao chegar em sua juventude, alguma coisa mais mudou e os rabiscos de criança tomavam forma de arte, sua particular arte. Despertou-lhe o gosto por verdes olhos que traziam consigo a virilidade, a grandeza dos oceanos, das matas, do contentamento, das flores raras. Suas telas pintavam paisagens místicas, com gotas de cristal nas folhas geladas da manhã, a água correndo esfumaçando o rio e as pedras do fundo cobertas por algas... verdes. De que mais precisaria, a guerreira, doce Nana, dona da sua arte e dos seus instintos? Dona de tudo o que sua preciosa altivez poderia trazer... Precisava de menos azul e verde e mais alguma coisa que não sabia bem o que era.
Acordava e dormia
e não entendia
a falta que sentia.
A angustiava esta indecisão por não encontrar o que buscava e não demorou a mergulhar nos tons mórbidos de cinza e preto. A estabilidade depressiva dos muros de concreto, dos edifícios infinitos, de castelos lúgubres, geleiras, da idéia de morte, mistério e fantasia. Percebeu a dignidade de estar sozinha.
Nana precisava da cura pra sua loucura e então parou de pintar. Suas telas brancas estão no cavalete, sua inocência e pureza de espírito ficaram gravadas nos últimos traços que iniciaria tentando se retratar. Deixou este mundo com os pulsos em tons de paixão. Nana foi em busca do manto vermelho.


Angelica Carvalho

4 comentários:

Anônimo disse...

Lindo..
amei.

Beijos,
Leticia

Anônimo disse...

História triste, mas colorida. Faz a gente pensa em quantas cores que temos passado nessa vida!


Parabéns, Ange!


Beijoks

BIa

Ana C. disse...

Texto cheio de cores e luz.

Muito bonito.

Anônimo disse...

Lindo e muito bem escrito!
Parabéns Angelica. Obrigada por esse presente.

bjo