domingo, 13 de junho de 2010

Recheio Surpresa



Os efeitos colaterais começaram no domingo. Uma indigesta contra-indicação surgida apenas um dia depois da Festa de Santo Antônio. Naquele sábado de Dia dos Namorados, Jandira compareceu à paróquia do Abranches certa de que conseguiria sua medalhinha na fatia de bolo de pão de ló. Seu passaporte para casamento certo, com as bênçãos do santo que cansara de mergulhar de cabeça para baixo no aquário do irmão mais novo. Seus 25 anos já anunciavam a ameaça de uma vida de solteirice e lamúria, segregada pelas quatro irmãs, sendo uma delas três anos mais jovem e já gozando de núpcias coroadas com um sobrado de três quartos no Bairro Alto. Faria todo o necessário para reverter aquela sina que se tornara motivo de chacota nas festas de família. Trapacearia se fosse necessário. E o foi. Esfarelou sua fatia de bolo com o garfinho de plástico até as migalhas não deixarem dúvida de que a tão cobiçada medalhinha não constava entre os itens do recheio. Mas eis que uma colega de súplicas ao seu lado se distrai, deixando à mostra o dourado da medalhinha escapulindo por aquele amarelo pálido da massa misturado ao mingau de abacaxi. Aproveitando-se da tagarelice da desavisada moça com suas amigas, Jandira pinçou discretamente a relíquia sagrada com as pontas dos dedos, jogando-a rapidamente em seu pratinho de plástico. Antes que alguém a flagrasse ou lhe desse voz de prisão, Jandira tratou de gritar e vibrar, erguendo o pequeno objeto com a mesma convicção da moça que pega o bouquet da noiva no dia do casamento. Logo foi parabenizada pelas demais e tratou de sair de fininho, deixando sua vítima a cavar seu doce inutilmente.
Chegando em casa, Jandira beijou diversas vezes a medalhinha, solitária em seu quarto, deitando na fria cama de solteira e guardando seu pequeno objeto do desejo dentro do bojo esquerdo do sutiã. À noite dormiu como criança, mas não sem antes repassar pela memória todo o biotipo do futuro pai de seus filhos. Indagava-se de qual seria a cor de seus olhos, sua formação escolar, a fonética do sobrenome complementando seu Souza, a semelhança com este ou aquele artista de cinema, se teria barba ou apenas um par de espessas costeletas... zzzzzzzzzzzzzzzzz.
O pretendente enviado por Santo Antônio chegou realmente com grande brevidade, logo na missa das dez. Sentara dois bancos atrás de Jandira, olhando-a de forma absolutamente indisfarçável. Mas não era parecido com nenhum dos modelos que desfilaram por sua passarela mental na noite anterior. Um homem rude, de traços grosseiros, dedos grossos, pálpebras pesadas, pele árida e cheia de sulcos profundos mesmo parecendo ser ele de pouca idade, cabelo empastado pela brilhantina, narinas excessivamente abertas formando duas crateras no meio da face, uma barba semi-grisalha e de pêlos mal distribuídos, orelhas de abano e uma dentição avantajada, que Jandira de imediato associou aos equinos que cavalgara temerosa na chácara de seu tio Osvaldo. Evitou de olhá-lo para não parecer que lhe estava dando trela. Mas a curiosidade para confirmar se estava de fato sendo fitada por ele, somada à estranheza com aquela aparência tão aquém de suas expectativas (complementada pelo figurino que faria ruborizar o estilista de Genival Lacerda), a fez virar-se mais de uma vez para trás, deixando a estranha figura crente de que se tratava de um eco a seu olhar apaixonado.
Os dias se passaram e o homem da igreja começou a perseguir Jandira. Ele esperava por sua saída de casa, indo atrás dela até o ponto de ônibus e aguardando Jandira adentrar no coletivo a caminho do trabalho. No começo, mantinha certa distância, mas não tardou a deixar de lado a preocupação em ficar desapercebido. Em pouco tempo já tomava a condução junto com Jandira. Logo sentava-se a seu lado. Dias depois, ensaiou uma conversa, perguntando as horas em dada ocasião, comentando do frio em outra, e assim foi, sem receber dela a mínima pelota. Pelo contrário. Jandira cogitou com a família de pedir proteção policial. Mas todos se colocaram desfavoráveis à ideia, pois descobriram que o obcecado pretendente era um feirante pacato e humilde cujo passado não encontrava qualquer episódio que depusesse contra a fama de bom rapaz. Apenas borrava seu histórico uma recente desventura amorosa, o que era absolutamente tolerável, visto que sua aparência certamente não propiciava grandes êxitos no campo afetivo (ficava óbvio para todos que, se houve alguma frustração romântica em sua vida, certamente é porque alguma mulher o rechaçara). Pelo visto, Jandira era a mulher que poderia lhe apagar essas infelizes cicatrizes na memória.
Cansado daquela abordagem infantil, Sandoval (este era o nome do feirante) resolveu logo se declarar. No pior lugar e na pior situação: dentro do ônibus, numa manhã chuvosa de segunda-feira. Jandira apenas se levantou e apertou a campainha para descer no próximo ponto, voltando para casa no meio do dilúvio e perdendo o dia de trabalho. Chorou e implorou para que não atendessem a porta se ele batesse. Foi convencida de que aquele não era o fim do mundo. E que até seria interessante se Jandira desse alguma chance a Sandoval, afinal Santo Antônio não podia ter errado tanto. Ela já estava com certa idade, e o moço tinha passado ilibado. Poderiam ao menos ser bons amigos.
Jandira então aceitou a companhia de Sandoval até o ponto de ônibus todos os dias. Também aceitou de saírem eventualmente para pegar um cinema no shopping, tomar um sorvete ou simplesmente caminhar pelo Parque São Lourenço. Aos poucos foi conhecendo o lado de Sandoval que ficara ofuscado pelo reluzir de seus dentes desproporcionais que saltavam por entre os lábios. Comovera-se com o passado triste do feirante, órfão de pai e mãe ainda menino. E se identificara com os sonhos de um dia comprar casa em Praia de Leste. Estavam longe de se tornarem íntimos, pois Jandira permanecia escorada em sua barricada de reservas, resistente a se envolver com alguém tão incompatível com suas pretensões conjugais. Mas na família o falatório era geral, com as irmãs brincando que aquilo já era namoro e o irmão mais novo se arriscando a tirar Santo Antônio do aquário, visto que sua missão estava a caminho de ser cumprida.
Cansada de hesitar entre o namorico e a embromação, Jandira deixou-se beijar numa noite de terça-feira, quando escoltada do ponto de ônibus para casa. Apenas se deu ao trabalho de esticar os lábios na direção de Sandoval, que mal acreditou em tamanha sorte trazida pelo destino, correspondendo de imediato ao apelo daquela boca fazendo bico, entregando-se enquanto os olhos fechados pareciam dizer “não me importo, Sandoval, faça o que quiser”. Aquele primeiro contato foi o estopim para uma reação de proximidade e planos que correu de forma acelerada. Quando se deram conta, já estavam sentados no gramado do São Lourenço escrevendo a lista de convidados para o casamento, enquanto apreciavam o lago, as ovelhas e outros casais de mãos dadas.
Alugaram a sede social da paróquia do Abranches, que comportaria facilmente os cerca de 50 convidados. A cerimônia foi seguida de churrasco e dança gauchesca protagonizada pelo marido gaiteiro da irmã mais velha. Dançaram a “Valsa do Imperador” e passaram a gravata para ser dada em pedaços aos convidados em troca de uma módica quantia para colaborar com a lua de mel (que, claro, seria passada em Praia de Leste). Mandaram fazer um bolo redondo de dois andares, com glacê formando um par de corações bem no alto. Sandoval estourou a champanhe, depois cruzando taças para o brinde e as fotos tiradas pelo irmão do noivo. Jandira cortou o bolo, distribuindo as primeiras fatias aos familiares mais próximos e depois voltando à sua mesa, pois às suas costas estava a churrasqueira e começava a sentir seu vestido ficar defumado. Recebeu também ela sua fatia de bolo, tratando logo de engolir um bocado para certificar-se de que o sabor era fiel ao que a vizinha doceira tanto enaltecera na hora de oferecer o confeito para a cerimônia. Mas, ao invés de doce, sentiu um sabor amargo que desceu áspero pela garganta, fazendo-a ficar tonta de imediato, desfalecendo em frente a todos os convidados, nem dando tempo para chamarem uma viatura do Samu.
Dois dias depois do sepultamento, descobriram a autoria do assassinato. Era obra da moça de quem Jandira roubara a medalhinha de Santo Antônio. A ex-noiva de Sandoval.


Mario Lopes

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