sábado, 18 de outubro de 2008

O diabo a três



Mais um feriado para reunir as três meninas. Agora estavam voltando em definitivo para a cidade pequena. Cada qual com seu diploma, mas dificilmente podendo exercer, em um lugarejo tão medíocre em oportunidades, a profissão na qual se formaram. Como eram muito unidas, faziam o que podiam para não se entediar, e aquela tarde na fazenda era mais uma ocasião para bom almoço, passeio a cavalo e conversas debaixo das árvores do pomar. Velouria, Tasha e Dishka acabaram mudando os planos no meio da tarde por ocasião de uma chuva torrencial que, de tão forte, agitou os cavalos e destelhou parte do estábulo. Enquanto o caseiro corria para providenciar lonas e escadas, o trio se abrigou na ampla varanda, dividindo espaço nas redes penduradas entre as pilastras e a parede que ainda conservava os pequenos desenhos a lápis feitos quando eram crianças. Os pais foram para a cidade averiguar se os estragos não se estenderam ao casario que a zelosa Dona Ana transformara em boutique. Certas de estarem sozinhas, adentraram em assuntos proibidos que nem se esforçaram em falar a voz baixa. Mas o filho do caseiro Jair, um rapaz tímido e solitário de nome Laio, juntava a louça suja na mesa da sala de jantar, contígua à varanda, quando atentou a termos pouco adequados para três moças de boa educação. Resolveu acompanhar a conversa na surdina, prostrando-se agachado ao lado do sofá, próximo à janela aberta que deixava adentrar o som das maliciosas conversas.
Em meio a relatos de aventuras até então por ele inimaginadas, as três entraram em uma revelação perturbadora e curiosa: Velouria mostrou-se preocupada com as “cápsulas do tempo”: se elas não poderiam vir a ser desenterradas com tamanha chuva que caía daquele céu cor de chumbo. As duas irmãs garantiram que não, que todas haviam cavado buracos fundos demais e em lugares que não tinham qualquer declive para a terra se desmanchar com a água.
Nas semanas que se seguiram, Laio procurou intrigado por informações sobre o que viria a ser uma cápsula do tempo. Em uma de suas idas para a cidade, foi até a biblioteca pública, mas não encontrou nada nos arquivos que pudesse lhe dar qualquer luz sobre o tema. Ao indagar a bibliotecária, que passava o dia lendo para espantar o marasmo e a solidão, chegou até um livro sobre a vida de Andy Warhol. Conheceu o papa da arte pop e também uma proposta que Laio considerou sem sentido: a de se guardar em uma caixa ou baú diversos artigos pessoais importantes de sua vida num dado momento, só abrindo o recipiente num futuro distante para poder reviver aquele período com nitidez. Assim, aromas, imagens e objetos saltariam para fora de suas urnas como verdadeiros mensageiros de uma época distante, reacendendo-a na memória. Laio deduziu que as três herdeiras da fazenda haviam feito isso, só que enterraram suas cápsulas do tempo. E, deduziu de novo, se enterraram é porque ali escondiam seus segredos do tempo presente.
Poucos dias depois, as três irmãs chegaram na fazenda para passar por lá uma pequena temporada: talvez sete dias, não mais que isso. Laio atravessou aquele período observando cuidadosamente os passeios do trio, encilhando seus cavalos logo cedo, mesmo quando elas nem lhe pediam a montaria. A única coisa que lhe fazia lamentar as cavalgadas era o fato de Velouria ter de trocar de roupa, tirando seu vestido de estilo hippie para calçar botas e exibir sua calça jeans de rasgos estrategicamente fashion na altura dos joelhos. Velouria era sua favorita, não que deixasse de se sentir atraído por Tasha e Dishka, mas a altivez da mais velha e sua segurança rebelde faziam a imaginação de Laio pulular em noites de prazer solitário. Ela era ao mesmo tempo o orgulho e o temor do pai, Alziro, que precisava de uma das três para encabeçar a continuidade dos negócios, mas temia por Velouria vender tudo em troca de uma vida de hedonismos no exterior.
Embora nenhuma das três se demorasse muito em qualquer lugar pelo qual cavalgasse, Laio conseguiu com o tempo investigar melhor onde haviam escondido suas relíquias proibidas. Tasha deliciava-se à sombra do mais frondoso pessegueiro do pomar todas as tardes, o mesmo em que ainda restava pendurado seu balanço de infância. Muito provavelmente, seu chão é que confinava os segredos da mais jovem filha do velho e robusto Alziro. Dishka gostava de saborear o chá de carqueja de Dona Evelina, mãe de Laio, e também de passear no pequeno jardim onde plantava-se hortaliças e ervas. Por fim, Velouria ficava sentada ao lado do grande cactus ao alto de uma colina, já nos limites da propriedade, alegando de lá poder ver toda a paisagem, as copas das árvores e até a cidade mais ao fundo.
Segurou sua curiosidade até o dia em que as três voltaram para a casa da família, pois o pai lhes ligava insistentemente querendo dar alguma ocupação para as ociosas irmãs. Munido de uma pá e lanterna, Laio decidiu que sairia nas noites seguintes para cavar nos locais suspeitos. Abriu covas profundas próximas ao pessegueiro, mas entrou em processo de exaustão quando completou o contorno ao redor da árvore. Seu esforço foi recompensado já em alta madrugada, quando sentiu a ponta de metal de sua ferramenta desferir um som oco no meio da terra. Levou para casa um pequeno baú de madeira, entrando sorrateiro pela humilde sala e tirando as roupas marrons de terra ao chegar em seu quarto pequeno e de teto carcomido por cupins. Abriu o baú e tirou de dentro dele laudas pautadas em diversas cores e com letra de capricho típico de uma mulher, com “a” e “o” que pareciam ter sido desenhados a compasso. Mas o conteúdo daquelas missivas, que Tasha certamente escrevera para si mesma, contrastavam com a pureza e esmero da letra. Eram relatos minuciosos de todo sexo vadio, sujo, perverso e inconfessável que ela havia praticado em sua vida, a qual ainda estava no frescor da alvorada. Nomes, datas e até locais estavam lá demarcados. Posições, predileções e minúcias de cada sensação de prazer e dor narradas em pormenores tão realistas que ficava claro não terem sido fruto da fantasia de uma jovem recém-formada. Laio leu e se excitou a tal ponto que não tardou a sujar aquelas folhas até então preservadas por madeira, terra e silêncio.
Na noite seguinte invadiu o terreiro de hortaliças, cavando logo ao lado dos pequenos ramos de carqueja. A tarefa agora parecia mais fácil que na noite anterior, talvez por já ter pego maior prática em cavar ou por ter trazido uma lanterna menor, que pode ablacar entre os dentes enquanto cavava. Desta vez não era um baú, mas sim uma caixa de madeira, contendo em seu interior uma outra, feita de isopor. Não quis continuar a abrir os recipientes ali na escuridão, correndo novamente para casa e se abrigando no silêncio de seu pequeno quarto. Percebeu que mal sujou a roupa, apenas estava com dor no maxilar e nos ombros. Na segurança de seu modesto aposento, abriu o isopor de Dishka e viu uma enormidade de pequenas bolas de isopor, leves e brancas, cobrindo algo que ainda não sabia o que era. Virou a caixa de lado, deixando aquela cobertura alva ser despejada sobre sua cama. Viu então diversos recipientes plásticos transparentes, contendo em seu interior pequenos tijolos de uma erva que deduziu ser maconha. Havia uma grande variedade da droga, algumas mais compactas, outras esfareladas e de um verde mais vivo. Também encontrou pequenas bolotas de cor negra e âmbar, talvez haxixe, pensou. Vasculhando melhor a caixa achou maricas de todos os tipos: artefatos para se fumar o cigarro de maconha quando este chega próximo ao fim e queima a boca. Eram pequenos cachimbos adornados por desenhos de duendes ou mini-esculturas de fadas feitas de Durepox. Papéis de cigarro de maconha com envelopes em língua estrangeira também estavam ali disponíveis. Laio não sabia como se fumava maconha, mas tirou um pequeno tijolo da droga de um dos sacos plásticos, raspou com a unha uma porção minúscula da droga, colocou-a sobre um pires que restava esquecido sobre a cômoda e foi e voltou da cozinha com uma caixa de fósforos. Ateou fogo e tentou sentir o cheiro, mas suas narinas foram impregnadas da pólvora do fósforo, fazendo-o tossir. Temendo ser flagrado, abanou com a mão a fumaça, que lhe pareceu semelhante ao aroma da carqueja. Acomodou todo o conteúdo novamente dentro da caixa, lamentando ter esparramado as bolinhas de isopor sobre a cama, pois teve dificuldade em juntá-las novamente. Guardou a caixa ao lado da outra, embaixo da cama, e tentou dormir, mesmo com a dificuldade oferecida por sua curiosidade quanto à terceira "cápsula" e à irritação trazida às suas narinas pela fumaça de pólvora e maconha.
A terceira noite foi a mais difícil de todas, isso porque o cactus parceiro de Velouria quando ela contemplava o horizonte vasto da região ficava a uma distância considerável, e a caminhada exigiu fôlego e paciência. Laio pensou em ir a cavalo, mas a montaria certamente iria fazer barulho e chamar a atenção de seus pais no meio da noite. Caminhou de lanterna em punho e botas de borracha pisoteando o encharcado solo da pastagem molhada pela chuva que caíra durante o dia. Do alto da colina é que foi perceber outra dificuldade irritante: o chão não era fofo como o que ficava ao redor do pessegueiro, nem seco como o das hortaliças, mas sim pedregoso e duro. Chegou em certo momento a duvidar que era aquele o lugar escolhido por Velouria, mas sabia que, pelo estilo determinado de sua musa, essas características pouco favoráveis tornavam o local muito propício a um esconderijo e, por isso mesmo, se mostravam determinantes em sua decisão, por mais trabalho que lhe dessem. Laio cavou até molhar o chão arenoso com seu suor, e quando já se aproximava a alvorada sentiu o regozijo de atingir o tão sonhado baú dos segredos. Era a caixa mais pesada de todas. Carregou-a com dificuldade, chegando a deixar a pá no meio do caminho para resgatá-la no dia seguinte. Entrou em seu quarto com os braços amortecidos pelo esforço. Depositou a caixa no chão e fez posição de afronta perante o peso de seu objeto do desejo, colocando as mãos na cintura e soltando a respiração ofegante como que subjugando alguém que lhe desafiou. Sujo dos pés à cabeça, ajoelhou-se perante a caixa e a abriu cuidadosamente apesar da pressa, curioso que estava de conhecer seu conteúdo. No entanto, a frustração veio na mesma proporção de sua gana por desvendar aquele mistério. Só havia uma coleção de discos de vinil. Percebeu então que o peso maior era da caixa em si, talvez feita de maçaranduba pelo tom negro que lhe é peculiar. Correu os dedos pelos discos e percebeu que todos eram de um mesmo artista: Pixies. Não entendeu o que poderia haver de segredo ali, e deduziu que Velouria era tão esperta que jamais deixaria alguém desvendá-la, mesmo que enterrando seus segredos em local ermo. Dormiu com a dor do cansaço e da frustração.
Os dias seguintes foram de expectativa, pois não sabia o que fazer com seu segredo. Também não sabia se devolveria as caixas a seus respectivos esconderijos. O que mais lamentava era o fato de não ter desvendado nenhum mistério de Velouria, a mais bela, enigmática e orgulhosa das três irmãs. A história de Velouria, porém, envolvia muita dor e superação, talvez daí tenha sido lapidado um gênio difícil de domar e cheio de si em seus orgulhos e desejos. Embriagada, ainda adolescente, colidiu com o carro de seu pai em um caminhão na rodovia que ligava a cidade à capital. Foram meses de recuperação, viagens para cidades com mais recursos e, segundo consta, diversas cirurgias plásticas. A Velouria que retornou era ainda mais bela do que a adolescente problemática que a cidade conhecia. Como um mero filho de caseiro, Laio sempre a observava com distanciada e respeitosa admiração. Pouco conversavam. Embora tivessem a mesma idade, os assuntos eram muito diferentes e o contraste de personalidade e erudição se agravou quando Velouria foi para a capital, levando consigo as outras duas irmãs em seguida. Ficaram esquecidos até mesmo os momentos de infância em que brincavam juntos de descer os declives do pasto sentados em cima de pedaços de lona.
Certo dia, as três moças chegaram na fazenda de surpresa. Laio se assustou com o ocorrido, pensando que então teria de tomar alguma decisão de improviso. Muito provavelmente elas iriam até os locais onde enterraram seus segredos, percebendo que a terra fora revolvida, chegando assim à conclusão de que alguém sequestrou seus mistérios. Laio poderia ficar calado, mas seria para as três muito fácil deduzir que foi ele o autor da proeza, já que seus pais ou os demais trabalhadores seriam muito pouco suspeitos.
Quando chegou o final do dia, Laio sentiu que a tensão havia se estabelecido no casarão da fazenda. As três moças mal conversavam entre si e também não dirigiam a palavra a ele. Comiam com dificuldade para engolir e falavam aos cochichos. Quando foram embora, no dia seguinte, deixaram no olhar uma faísca de afronta, entrando no carro pensativas em como resgatar o passado que as condenava.
Na semana seguinte, Dishka veio sozinha para a fazenda. Cavalgou a tarde toda e, já no final do dia, chamou Laio para lhe fazer companhia. Ele sabia qual a intenção do passeio, mesmo assim encilhou seu animal e trotearam por um bom trecho sem dirigir palavra um ao outro, até que Dishka resolveu se manifestar, indagando onde estavam as suas cápsulas do tempo. Laio não tentou se defender ou se dar por desentendido. Falou que estavam em seu poder e muito bem cuidadas, que ninguém poderia chegar até elas que não ele. Mais aliviada, Dishka perguntou quando ele as devolveria. Laio nada respondeu, apenas disse que queria aprender a fumar maconha. Desceram de suas montarias, sentaram-se no pasto, cuidando para evitar um eventual monte de esterco. Dishka tirou do bolso da calça um pequeno embrulho plástico. Abriu-o e mandou que Laio esticasse a palma da mão. Sobre ela, passou a esfarelar a droga, explicando que aquela operação se chamava “dechavar”. Tirou de outro bolso um papel de seda para fumar a maconha, enrolando-o cuidadosamente e pedindo a Laio para que prestasse atenção na forma de salivar as beiradas, de maneira a não abrir o cigarro ao ser tragado. Fumaram, com Laio tossindo fortemente, mas depois entrando no estágio de letargia misturada a profusão de pensamentos e sensações, levando-o para outro campo muito longe daquele. Ao ser trazido novamente para casa, Dishka percebeu que o rapaz não estava em condições de pensar ou agir, dando-lhe apenas a recomendação de que cuidasse bem da caixa de isopor, deixando claro que ela voltaria outro dia para resgatá-la. Trancado em seu quarto, Laio adormeceu enquanto via o teto se abrir sobre sua cabeça.
Não tardou à outra irmã, Tasha, vir reivindicar também sua caixa. Caminhando com Laio pela plantação disse que iria levar seu baú e o das duas irmãs. Laio afirmou que os devolveria, mas que queria ouvir da própria Tasha alguma das histórias relatadas por ela na cápsula do tempo. Tasha hesitou, mas acabou aceitando a proposta. Ficou, porém, sentada de costas para Laio, a fim de não encará-lo nos olhos enquanto contava um episódio de aventura com um primo no parque de diversões que se instalou na cidade há alguns anos. Sem poder ser visto por sua interlocutora, Laio se acariciou por sobre a calça.
Ao final do dia, Laio reconsiderou sua proposta, reafirmando que devolveria as caixas, era promessa, mas que ainda iria querer ouvir outras histórias e fumar mais antes de cumprir com sua parte no trato. Não adiantou Tasha tentar negociar, mesmo porque ela sabia estar nas mãos de Laio: ele tinha as provas e poderia fazer com elas o que bem entendesse. Assim, outras sessões de maconha e relatos de picardia sexual se seguiram com as irmãs, às vezes até com as duas juntas. A grande frustração de Laio estava no fato de Velouria não se unir ao grupo, e de ele nada poder fazer para reverter sua desvantagem, já que não encontrara nenhum segredo em sua cápsula do tempo. Passou então a ouvir todos os dias os discos de vinil na vitrola antiga de seus pais. A princípio, não gostava do som do Pixies, mas acabou se acostumando, e chegou a um momento até em que passou a sentir falta de ouvir as músicas. Sua canção favorita tinha o mesmo nome de sua amada, e Laio então descobriu por que Veroushka escolheu o apelido de Velouria.
As frequentes sessões de maconha e relatos picantes no campo não tardaram a motivar iniciativas mais ousadas de Laio, que passou a tentar beijar as duas irmãs naqueles encontros. Conseguiu avanços com cada uma e em pouco tempo já trocavam carícias, com as duas moças tornando-se ao mesmo tempo amantes e reféns. Laio tentava agradá-las com presentes, como dois gatinhos nascidos há pouco tempo no celeiro da fazenda. Buscava criar um vínculo e já se irritava com as pressões pela devolução das cápsulas do tempo. Seu plano era o de conquistá-las a tal ponto que lhe deixassem ficar com as cápsulas e se entregassem a seus delírios de tê-las como fornecedoras de prazeres mentais e carnais. Foi quando Velouria sentiu a necessidade de intervir. Certo dia, desembarcou na fazenda sozinha, a bordo do utilitário do pai, e intimando Laio, com olhar severo, a devolver de uma vez as caixas para suas irmãs. Desta vez, foi Laio quem pediu um passeio pelo campo para conversarem. Fez então uma proposta: queria ter Velouria uma única vez e então, jurava, iria devolver as caixas. No mesmo dia, inclusive. Velouria aceitou. Combinaram então o local: ao lado do cactus, no alto da colina, onde poderiam ver tudo e não ser vistos por ninguém.
No dia, Laio levou uma mochila com um lençol e um colchonete dobrável para minimizar o desconforto do chão árido que rodeava o vegetal agreste. Velouria cumpriu com sua parte do acordo, estando lá no exato horário combinado. Laio levou a caixa de Dishka e o baú de Tasha. Velouria disse que ele poderia ficar com seus discos, dando-lhe alívio, já que dificilmente iria conseguir novamente transportar aquela caixa tão pesada. Velouria estava com seu vestido hippie, que tremulava com o vento que chicoteava a colina em lufadas agressivas. Ela despiu-se e fizeram amor até se ferir com seus corpos rolando sobre as gramíneas e pedras. Quando Laio acordou, Velouria já havia ido embora com as cápsulas do tempo das irmãs. Levantou-se e voltou para sua casa, ainda entorpecido por haver consumido um ato até então para ele considerado inalcansável.
Os dias se passaram e Laio soube que Velouria estava se mudando para Memphis, nos Estados Unidos. Ninguém sabia por quanto tempo essa mudança iria durar, talvez por toda a vida. Acabaram-se as oportunidades dos feriados, em que ela com as duas irmãs vinham para a fazenda cavalgar e dar risada à sombra das árvores do pomar. Eram garotas do mundo nascidas por acaso numa cidade do interior. Logo, certamente Tasha e Dishka também iriam para a América com Velouria. Laio preferia não pensar nas possibilidades, apenas lamentava não descobrir novas cápsulas do tempo.
Certa manhã, Laio recebeu um pacote vindo do correio. Não havia nenhuma assinatura na caixa, e ele ficou com receio de abri-la dentro de casa. Laio caminhou pelo campo com o pacote embaixo do braço. Resolveu abri-lo quando já estava a uma distância considerável. De dentro da caixa tirou o vestido hippie de Velouria. Abraçou-o surpreso, tentando sorver o aroma do corpo outrora ali abrigado e que ele teve a oportunidade de tocar por uma tarde. Porém, percebeu no meio do vestido uma mancha vermelha. Sangue? Laio temeu por Velouria ter se matado e lhe enviado o vestido como vingança. Neste instante, relembrou dos encartes dos discos do Pixies deixados por Velouria, com a tradução escrita ao lado das letras pelas mãos dela própria. Havia uma música chamada “Cactus”, e Laio recordava bem de um trecho:
“Fure suas mãos num cactus
Limpe o sangue no vestido
E mande-o pra mim”
Laio então se deu conta de que Velouria tinha furado a mão no cactus, intencionalmente, logo após terem se consumido no alto da colina. Obedecera o ordenado pela letra e lhe enviou o presente. Laio então tirou do bolso um cigarro de haxixe que fez com a droga antes de devolver a caixa de Dishka para Velouria. Ficou fumando e apreciando o vestido, acariciando o tecido e esfregando-o suavemente em sua face. Chegou a lamber a mancha vermelha em seu centro. Entre uma tragada e outra, Laio percebeu que talvez as letras das músicas trouxessem mais revelações, que este fosse o verdadeiro segredo enterrado por Velouria. Deixou o vestido discretamente pendurado em uma macieira, colocou a caixa vazia embaixo do braço e correu para sua casa.
Abriu os discos e leu as letras de forma aleatória. Algumas chamaram sua atenção:
“Enquanto estávamos dormindo
Eu tentei dizer
Mesmo em sonhos
Minhas palavras foram assopradas para longe”
Seria mais uma revelação de que Velouria queria dizer algo mesmo estando distante? Outras letras pareciam não fazer o menor sentido:
“Quero crescer
Até me tornar
Tornar um degenerador, degenerador”
O que seria um degenerador? Um trecho então chamou sua atenção de forma contundente:
“Bem, sente-se meu filho maligno
E deixe-me contar uma história
Sobre o garoto que caiu da glória
Ele tirou a sua irmã de sua cabeça
E a impregnou nos lençóis
E eles rolaram acima da grama e das árvores
Isso não é nenhum feriado
Mas sempre acaba desse jeito
Aqui estou eu com a minha mão”
Seria uma insinuação de que eles eram irmãos? Não podia ser, com certeza era o haxixe deturpando suas interpretações. Continuou lendo os encartes para tentar tirar aqueles pensamentos da cabeça e fazer outras descobertas.
“Eu tenho um rosto quebrado,
Eu tenho
Eu tenho um rosto quebrado
Eu não tenho lábios,
Eu não tenho língua
Onde havia olhos
Há apenas espaço”
A música parecia referência ao acidente sofrido por Velouria. Mas e se ela tivesse sido trocada por outra garota nesse tempo todo em que ficara distante em cirurgias diversas? Se Veroushka e Velouria fossem pessoas diferentes? Agora, Laio suava frio e suas deduções o perturbavam cada vez mais. Tremia e tinha a visão embaçada, mas continuava a passar os olhos pela letra da composição:
“Havia esse garoto que tinha dois filhos com suas irmãs
Que eram suas filhas,
Que eram suas amantes favoritas”.
Uma nova referência ao fato de terem o mesmo sangue nas veias? Ele não podia deixar de levar em conta que seu pai era um homem muito ingênuo, e que sua mãe nunca conseguiu disfarçar bem sua admiração por Alziro. E pior: Alziro era afamado por seus dotes de conquistador. Some-e a isso o fato de ser poderoso, influente e ter sua mãe trabalhado na casa da família como doméstica antes de se casar com seu pai... Já farto de raciocinar e chegar a conclusões tão ameaçadoras, Laio arremessou a caixa do vestido contra a parede, fazendo saltar de dentro dela algo que ele ainda não havia visto: um pendrive. Não sabia ao certo qual a função daquele pequeno objeto, mas tinha certeza que ele abrigava informações para serem vistas em um computador. Ali poderia estar alguma prova cabal de que ele era uma bastardo incestuoso, ou quem sabe gravações que mostrassem ter sido ele um chantagista das três irmãs, ou talvez até coisas piores (um vídeo de Velouria se matando e limpando o sangue com seu vestido?). Ele tinha ciência de que não adiantaria destruir o objeto, pois Velouria teria as mesmas informações em algum computador. O turbilhão de ameaças juntou-se ao fato de sua vida não ter mais sentido sem as três irmãs à disposição, fazendo Laio tomar uma atitude drástica. Foi até o celeiro, engoliu o pendrive e, com ele, uma quantidade altamente letal de herbicida. Morreu se propondo a ser ele próprio enterrado como uma cápsula do tempo, pronta para fazer surgir suas revelações num futuro distante.
No instituto médico legal, ninguém entendeu quando foi feita a incisão em seu abdômen e retirado de suas vísceras o pendrive, que, ao ser acessado, revelou haver em seu interior um único arquivo. Nele, contemplava-se um vídeo de despedida em que Velouria, já em Memphis, filmou suas duas irmãs.





Mario Lopes

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito intrigante heim...
Bjks da Lu

Anônimo disse...

Os legistas do IML também acharam, Lu...
Beijos.

Mario