Desaforadas

Tema para temer

Hoje, excepcionalmente, o blog fugirá do tema da semana devido a uma causa maior. Aliás, a modificação ocorreu bem de última hora, graças à informação da antenadíssima Desaforada X Luciana Oliveira. Neste 15 de outubro de 2008, blogueiros de todas as partes do mundo estão falando “a mesma língua”, debatendo sobre o mesmo assunto e ao mesmo tempo. Isso devido a uma ação muito louvável chamada Blog Action Day. O tema é “pobreza”, um assunto que merece sempre estar em pauta, principalmente em tempos de crise mundial. Mas a abordagem que faremos aqui não vai se restringir à miséria financeira.

Em essência, pobreza é carência. Portanto, há vários tipos de pobreza. E para ilustrar algumas delas, seguem aqui cinco videoclips soberbos tanto na proposta estética quanto no alerta. Para explicar um pouco cada material e sua intenção, uma resenha sobre a banda, a música ou a letra fará as vezes de anfitriã para um universo sofisticado de sons e imagens. O que já de imediato mostra que uma das piores pobrezas que existem é a de sensibilidade – mazela que passa longe da fartura criativa destas verdadeiras obras de arte audiovisuais.


The Host of Seraphim – Dead Can Dance
O Dead Can Dance é uma banda australiana que nada tem a ver com a pegada surf de grande parte de seus conterrâneos. Eles mudaram-se de Melbourne para Londres já no início dos anos 80. Na capital inglesa, assinaram contrato com o lendário selo 4AD, responsável por presentear o mundo com relíquias sonoras do quilate de This Mortal Coil, My Bloody Valentine, Lush, Pixies, Cocteau Twins, entre outras preciosidades. Mas todo esse preâmbulo é só para deixar claro que a elegância sonora e o universo glamuroso de ícone do pop sofisticado não tornou o Dead Can Dance uma banda esnobe, pelo contrário. Fazia world music, música medieval e da Renascença Européia com uma ambientação contemporânea e muita personalidade em composições melancólicas e críticas, como a esplêndida “American Dreaming”. Mas foi no álbum “The Serpent's Egg” que a banda lançou uma faixa que abalaria o mundo não apenas pelo vigor sonoro mas também pela pujança, crueza e estocada forte na consciência impregnadas em seu videoclip. Assista e sinta entrar pela retina um pouco da sensação de estar entre os mais de 1,4 bilhão de seres humanos abaixo da linha de pobreza.




Under Pressure – Queen e David Bowie
Classe média também é pobre. Vive sob enorme pressão para não cair de “padrão”, ao mesmo tempo em que é o tempo todo incitada a galgar postos superiores no quadro social. Essa pressão bipolar torna o cidadão escravo da própria condição à qual se dispôs a se enquadrar, afinal não se pode chamar de livre alguém que vende oito horas de seu dia para fazer algo a contragosto. Leia a tradução da letra desta música do Queen, com participação especialíssima do David Bowie, que tem um clip espertíssimo, todo feito com imagens de arquivo e respondendo plenamente (às vezes até de forma redundante) à intenção principal da música.

Pressão,
me derrubando com um empurrão
Derrubando você,
nenhuma pessoa pede isso
Sob pressão
que incendeia um edifício inteiro
Divide uma família em duas
Coloca pessoas nas ruas
Está tudo bem!
É o terror de saber
A que ponto chegou o mundo
Observando alguns bons amigos
Gritando 'Deixem-me sair!'
Rezo para que o amanhã me deixe mais animado
Pressão sobre as pessoas,
pessoas nas ruas
OK
Dando pontapés por aí
Chuto meu cérebro pelo chão
Estes são os dias em que nunca chove mas transborda
Pessoas nas ruas
Pessoas nas ruas
É o terror de saber
A que ponto chegou o mundo
Observando alguns bons amigos
Gritando "Deixem-me sair!"
Rezo para que o amanhã me deixe mais animado
Pressão sobre as pessoas - pessoas nas ruas
Afastei-me disto tudo como um homem cego
Sentei num muro mas isso não funciona
Continuo fornecendo amor
mas ele está tão rachado e despedaçado
Por quê? Por quê? Por quê?
Amor, amor, amor, amor
A insanidade ri, sob pressão estamos pirando
Não podemos dar a nós mesmos mais uma chance?
Por que não podemos dar ao amor mais uma chance?
Por que não podemos dar amor?
Dar amor, dar amor, dar amor, dar amor...
Pois o amor é uma palavra tão fora de moda
E o amor te desafia a se importar com as pessoas
no limite da noite,
E o amor desafia você
a mudar nosso modo de nos preocupar com nós mesmos
Esta é nossa última dança
Esta é nossa última dança
Isto somos nós mesmos
Sob pressão
Sob pressão
Pressão




Unfinished Sympathy – Massive Attack
A miséria do coração despojando o ser daquilo que é mais valioso em sua escala de necessidades: o amor. Pois justamente o suburbano coração é, neste clip, traduzido em imagens de forma tão literal que chega a assustar. Este trip hop da banda britânica Massive Attack ocorre em plano contínuo, acompanhando uma caminhada por um bairro pobre com uma stady cam e só. Seco como amor sem reciprocidade. O mentor da banda, Robert Del Naja, sempre se mostrou atento a temas sociais, como quando comprou com o vocalista do Blur, Damon Alban, páginas inteiras de revistas para protestar contra a guerra do Iraque. A seguir a letra desta composição que é de uma orquestração tão luxuosa que contrasta de forma aguda com a miséria do cenário.

Eu sei que fui louca no amor antes
E como poderia ser com você
Dói, baby? Realmente me machucou, baby?
Como você pode ter um dia sem uma noite?
Você é o livro que me abriu
E agora eu tenho que saber muito mais
O curioso beijo do seu potencial
Tem o meu corpo e a mente contínua
Dói, baby? Realmente me cortar, bebê?
Como você pode ter um dia sem uma noite?
Você é o livro que me abriu
E agora eu tenho que saber muito mais
Como uma alma sem uma mente
Em um corpo sem um coração
Estou faltando em toda parte...




Redemption Song – Ziggy Marley
Ziggy Marley se uniu ao grupo The Chieftains para interpretar "Redemption song", a iconográfica canção composta por seu genial e incomparável pai. A versão deste clip está no álbum "The Wide World Over - A 40 Year Celebration", gravado para comemorar o aniversário deste grupo de música tradicional irlandesa. Duas coisas a ficar atento: a impressionante simbiose entre dois estilos musicais tão diferentes e a tônica libertária da letra, que faz alusão tanto à escravatura negra quanto à prisão que criamos em nossos próprios corações e mentes. A pobreza, neste caso, vem de dentro.

Velhos piratas,
sim, eles me roubaram;
Me venderam para navios mercantes,
Minutos depois de eles terem me tirado da lagoa profunda
mas minha mão foi fortalecida
pelas mãos do Todo Poderoso,
nós avançamos nessa geração
triunfantemente
Tudo o que eu sempre tive foram canções de liberdade,
você não irá ajudar-me a cantar essas canções de liberdade?
porque tudo o que eu sempre tive
foram canções de liberdade
canções de redenção.
Liberte-se da escravidão mental
ninguém além de você pode libertar sua mente,
não tenha medo da energia atômica,
porque eles não podem parar o tempo,
por quanto tempo vão matar nossos profetas,
enquanto nós permaneceremos de lado olhando.
Sim, alguns dizem que é apenas uma parte
nós temos que cumprir o livro.
Você não irá ajudar-me a cantar essas canções de liberdade?
porque tudo o que eu sempre tive foram canções de redenção.
Tudo o que eu sempre tive foram canções de redenção
essas canções de liberdade,
canções de liberdade.




Save Me – Aimee Mann
Paul Thomas Anderson dirigiu um dos mais impressionantes e arrebatadores filmes do final do milênio passado: “Magnólia”. Uma obra ao mesmo tempo tão visceral e sensível que só mesmo uma compositora em similar grau de sintonia poderia ambientar adequadamente com sua trilha sonora: Aimee Mann. Várias músicas da ex-integrante do Til Tuesday não só formaram a colcha sonora da produção como também inspiraram seu diretor enquanto escrevia o roteiro. O ponto mais convergente entre a película e a música deste clip é que todos somos vítimas de pobrezas diversas: do milionário magnata das telecomunicações ao policial solitário, não há um só personagem no filme que não precise ser salvo. Pobreza de saúde, de moral, de auto-estima, de compaixão, de amizade, de tudo. A tradução e as imagens explicam melhor.

Você parece...
uma apropriação perfeita,
Para uma garota carente...
de um torniquete.
Mas você poderia me salvar?
Venha e me salve...
Se você puder, salve-me,
Deste bando de loucos,
Que suspeitam que nunca irão amar ninguém.
Pois eu posso dizer...
você sabe como é.
Uma longa despedida...
para a greve de fome
Mas você poderia me salvar?
Venha e me salve...
Se você puder, salve-me,
Deste bando de loucos,
Que suspeitam que nunca irão amar ninguém.
Ocorreu-me...
Como um cão de caça
Como Peter Pan, ou como o Super-homem
Você aparece...
para me salvar.
Venha e me salve...
Se você puder, salve-me,
Deste bando de loucos,
Que suspeitam que nunca irão amar ninguém,
Exceto os loucos,
Que suspeitam que nunca irão amar ninguém.
Mas os loucos,
Que suspeitam que nunca irão amar ninguém.
Venha e me salve...
Por que você não me salva?
Se você puder, salve-me,
Deste bando de loucos,
Que suspeitam que nunca irão amar ninguém,
Exceto os loucos,
Que suspeitam que nunca irão amar ninguém.
Exceto os loucos,
Que nunca amarão ninguém.

Agora, aproveite para refletir também em quais tipos de pobreza afligem as pessoas ao seu redor. E de qual delas você sofre. A descoberta pode ser redentora.

Bom Blog Action Day pra você.



Mario Lopes