domingo, 12 de outubro de 2008

Uma história baseada em fatos irreais

Os relatos de alucinações a seguir procuram ser os mais fiéis possíveis aos depoimentos sobre o barbitúrico utilizado na experiência citada. Os nomes dos personagens reais que vivenciaram os acontecimentos mencionados foram trocados para preservar suas identidades, bem como foram omitidos maiores detalhes sobre os medicamentos com potencial alucinógeno como também seus componentes farmacológicos. O episódio ocorreu em Curitiba, mais precisamente na região central e em bairros adjacentes.

Apesar de não ter diploma de farmacêutico, Guliver conseguiu emprego de balconista em uma drogaria da capital. Curioso, percebeu que alguns clientes faziam compras estranhas ou extravagantes com certa freqüência. Em dada ocasião, indagou a um colega de farmácia porque um rapaz sempre vinha comprar três tubos de uma certa marca de colírio. A resposta foi a de que ele não o fazia para tratar algum tipo de problema de visão que necessitasse do medicamento, mas sim porque ao beber aquela quantidade do líquido passaria a sentir seu efeito alucinógeno. No ato lembrou-se dos famosos chás de cogumelo e “de fita” (K7) que sempre estimularam sua curiosidade nos tempos de adolescência.
No convívio diário com receitas médicas, junkies e descobertas no misterioso mundo dos barbitúricos, acabou sabendo de um dado medicamento cicatrizante, recomendado para quadros de pós-operatório, que, ao ser ingerido na forma de chá (ou melhor, de infusão), em grande quantidade (conteúdo de mais de 50 cápsulas), levaria o usuário a uma experiência existencial absolutamente fora dos padrões do imaginável.
Reuniu-se então com outros dois amigos, Toltchoque e Malenque, para realizarem juntos a experiência em uma casa próxima à região do Largo da Ordem, centro histórico de Curitiba. Com muito esforço, conseguiram digerir a nada palatável bebida, ficando sentados ao redor da mesa de centro da sala à espera dos efeitos. Irritado com a demora em sentirem alguma reação daquele robusto eligixir alucinógeno que acabaram de ingerir, Malenque deixou os amigos por um instante para ir buscar uma cerveja na cozinha. Foi quando Toltchoque apontou para o cinzeiro no centro da mesa indagando o que aquela barata estava fazendo ali. Guliver achou engraçada a brincadeira, já que sabia se tratar de um cinzeiro mas o viu se transformar em barata simultaneamente ao questionamento do amigo. Resolveu revidar, dizendo que não era uma barata, e sim uma aranha. Toltchoque se surpreendeu ao perceber ter sido sua barata transformada em aranha pelas simples palavras de Guliver. Resolveu não deixar por menos e se contrapôs a Guliver, dizendo que ele estava enganado: era um sapo que estava sobre a mesinha de centro. Agora já mais irritado por seu amigo ter discordado novamente dele, resolveu tomar uma atitude radical, falando que o que havia ali era uma cobra. Foi então que ambos se desesperaram ao ver diante de seus olhos se empinar uma enorme e grossa serpente, escamosa e multicolorida que aprontava o bote com a língua bifurcada para fora da boca e deixando à mostra os dentes pontiagudos como agulhas. Assustado com os gritos dos amigos, Malenque voltou ao recinto tentando desfazer o primeiro feitiço promovido pelo composto alucinógeno que beberam: pegou o cinzeiro e o chacoalhou frente aos olhos de Guliver e Toltchoque, que demoraram a se convencer de que estavam sendo vítimas da própria imaginação (neste momento potencializada a níveis que eles próprios jamais supunham ser atingíveis).
Resolveram sair da casa para respirar ar puro e evitar de fazer algo que pudesse lhes dar problemas com a família. Caminharam subindo em direção às Ruínas do São Francisco. Ao passarem por um punk, Guliver puxou briga sem motivo, mas foi segurado por seus amigos (fato este que ele não lembra e que ficou nas afirmativas de Toltchoque e Malenque). Quando chegaram próximos aos barzinhos da região, os três se dispersaram, cada qual seguindo o rumo ditado por sua própria alucinação. Guliver, já sem noção de perigo ou mesmo de realidade, passou por baixo da trincheira da Muricy com Augusto Stelfeld, rua de grande trânsito principalmente num sábado à noite, fazendo o trajeto na contramão enquanto os veículos desviavam e buzinavam para chamar sua atenção.
Em dado momento, um flash mudou todo o universo de Guliver. Não era mais noite, e sim um dia de escaldante sol amarelo ouro e sem nuvens, em céu tenuamente coberto por uma rala camada de neblina. Ele estava em um deserto agreste, com solo rachado e vasto, do qual se precipitava um ou outro cactus na imensidão da paisagem. Guliver estava vestido com um traje de Jim da Selvas (botas, calça de lona e camisa ocre, com um chapéu que lhe protegia do sol). Caminhava altivo. Em seu cinto, restava atravessado um bacamarte de boca larga: um tipo de espingarda que se alarga no cano, sendo que é por ele que se introduz a pólvora e a munição. Sacou da arma e deu um disparo no céu. Seu tiro abriu no firmamento uma gigantesca vagina. E, de seu interior, saiu em vôo delicado e ameaçador um pterodátilo. A ave-réptil descreveu uma trajetória longa pelo céu, distanciando-se até quase sumir no pálido azul e então voltando em um mergulho determinado. Ainda em movimento, ficou em posição de ataque, só que com uma asa para cima e outra para baixo. A asa de baixo começou a tocar o solo e logo passou a rasgá-lo causando um enorme estrondo e fazendo tremer toda a terra. Ainda distante, Guliver viu a boca do pterodátilo se abrir, exibindo uma infinita fileira de dentes, vindo em sua direção e rachando o solo diante de seus pés. A única reação de Guliver foi correr em pânico para se salvar da ameaça alada.
Salvo possivelmente pelos próprios batimentos cardíacos, Guliver despertou de sua alucinação em uma rua escura do centro da cidade. Todo suado e ofegante, tratou de procurar recuperar os sentidos para segurar a razão e buscar evitar um novo pesadelo como aquele. Andou a esmo, até que observou, dentro de uma casa antiga, uma festa com várias pessoas celebrando, entre elas Toltchoque e Malenque. Fez uma pequena escalada nas saliências da parede externa e bateu no vidro, para que os amigos o percebessem e viessem ao seu encontro, mas os dois não ouviram, e se o ouviram desdenharam. Irritado, Guliver voltou a bater só que com mais força, desta vez os amigos olharam para ele mas apenas riram de sua situação. Foi quando resolveu ir até a porta e bater insistentemente. Da parte interna apenas ouviu um “vai embora, maconheiro, senão eu chamo a polícia”. Guliver gritou impropérios, dizendo que não iria sair, mas então avistou uma viatura da polícia que coincidentemente passava pelo local. Resolveu ficar quieto e sair de fininho como se nada tivesse acontecido, já que queria evitar confusão (e ele não estava em condições mentais e psicológicas favoráveis a um anti-doping ou a uma simples conversa).
Passou o resto da noite vendo seus dois amigos surgirem aqui e a ali para depois fugirem dele, deixando-o em situação embaraçosa ou perigosa, até que, exausto, testemunhou o dia amanhecer aos poucos enquanto se esgueirava pelas laterais da praça Osório, tentando reduzir a sensação de frio ao fazer fricção com as palmas das mãos contra os braços. A luz do dia que começava a emanar com a alvorada trazia consigo o alento de que os pesadelos também se dissipariam com ela. Mas, ao caminhar para o meio da praça, viu sentados na borda do chafariz três elementos mal encarados, vestidos com roupas de couro, tatuados na face e nitidamente lhe fazendo afronta com o olhar. Guliver mudou de direção para evitar o perigoso trio, mas então percebeu a aproximação de outros dois elementos, também em roupas de couro, com piercings e alargadores por todo o rosto, fazendo caras e bocas. Mais uma vez desviou do rumo tomado, só que novamente se viu diante de elementos de índole duvidosíssima, e desta vez em uma turba de vários homens e mulheres com jaquetões pretas, cabeças raspadas ou com penteados extravagantes, empunhando socos ingleses, marretas e facas de caça, gritando palavras de ordem contra Guliver. Desesperado, correu em direção ao módulo policial da praça, mas um rompante de lucidez o fez novamente se dar conta de que seu estado de consciência não o permitia pedir ajuda aos homens da lei. Resolveu então sair correndo pela Boca Maldita, Rua XV e Westphalen, parando aqui e ali algum transeunte para pedir socorro.
Sua fuga ficou ainda mais dramática quando o bando montou em suas Harley Davidson, vindo atrás dele girando correntes do ar e exibindo caveiras no lugar do farol das motos, como verdadeiros distintivos do mal. Guliver implorou por ajuda para uma família que tratou de se soltar de seus braços para correr assustada. Tomado de um medo infreável, Guliver saltou por cima da mureta de uma casa, escondendo-se em seu quintal. Ao observar pela lateral da residência, viu no jardim um homem idoso que cortava a grama com uma foice que manipulava habilmente em movimentos ágeis bem rentes ao solo, podando as pontinhas verdes dos vegetais e decepando o mato mais alto. O idoso então flagrou Guliver, lhe dirigindo um olhar de sadismo e levantando a foice como um verdadeiro arauto da morte, só lhe faltando o capuz e a fisionomia esquelética. Acometido do maior desespero de sua vida, Guliver gritou, correu, se esquivou do homem da foice e pulou pelo muro da casa, machucando-se e agarrando aos berros as pessoas que passavam pela rua, implorando por ajuda. Como ninguém o atendia, voltou a correr da matilha de sádicos montados em suas motos demoníacas.
Guliver pulou o portão de ferro de um edifício e foi até o seu interior. Subiu de andar em andar, batendo nas portas, socando-as e chutando-as aos gritos, pela janela dos corredores, observava lá embaixo o grupo fazendo voltas pelo estacionamento do prédio em suas motos, urrando e jurando sangue naquela manhã dominical. Quando chegou ao último andar, e sem ter sido socorrido por nenhum dos apartamentos, Guliver escolheu uma das portas para socar chutar até que se abrisse lhe deixando passar. E assim o fez, até que o casal que habitava o apartamento resolveu conversar para tentar entender o que se passava, Guliver, sem ar e aos prantos apenas conseguia dizer que estavam vindo para lhe pegar. O casal passou por baixo da porta (ou do que restava dela) um pedaço de papel e uma caneta, pedindo para que Guliver anotasse o telefone de sua mãe, pois se comprometeram a ligar para ela pedindo ajuda. O rapaz atendeu ao pedido, e ficou ainda por um bom tempo ouvindo o ronco das motos no estacionamento e se encolhendo em um canto do corredor para chorar enquanto esperava pela ajuda materna. Depois de algum tempo, ouviu passos muito nítidos subindo pela escada, teve então a certeza de que seus assassinos se aproximavam. Já tomado por completa fúria e desespero, socou e chutou a porta até quase arrebentar o trinco, parando apenas quando viu sua mãe e uma amiga dela despontarem no alto da escada. Ao ver sua progenitora, correu até ela abraçando-a aliviado, quando então ouviu da outra senhora:
- Seu maconheiro, nunca mais vou deixar meu filho sair com você!
O filho da referida senhora era Toltchoque, que a essas alturas tinha pesadelos tão horríveis ou piores que os de Guliver, já que estava em pleno cemitério municipal, correndo de um lado para o outro de zumbis e criaturas das trevas.
Por sua vez, Malenque estava no Rio Belém (a versão curitibana do Rio Tietê), com as mãos na nuca e, vez ou outra, se jogando para baixo da água turva e poluída, procurando se esconder ninguém sabia de que. Ao redor dele, um enorme grupo de crianças e pais favelados o observavam sem saber o que fazer. Depois, descobriu-se que Malenque alucinava estar na guerra do Vietnam, e que aviões de caça desciam em vôos rasantes, metralhando na água, o que o fazia se esconder para não ser alvejado.
O efeito alucinógeno durou mais alguns dias, com os três ficando confiados em uma mesma casa para não terem novos problemas em ambiente urbano. Chegavam a ter visões com personagens da TV que saiam do aparelho para vir intimidá-los, sendo que o pior caso foi o de um boxeador que parou a luta para comprar briga com um dos integrantes do trio. Após a experiência, Guliver se tornou um careta radical, passando a não mais beber nem fumar (nada). Com a superdosagem do medicamento, ele também acabou adquirindo um efeito que talvez tenha ocorrido nos outros dois amigos: uma enorme facilidade de cicatrização, sendo que qualquer corte que fizesse em pouco tempo ficava curado.
A história termina assim, sem graça mesmo. Droga, né?



Mario Lopes

2 comentários:

Anônimo disse...

Uma viagem nada agradável. Infelizmente já passei por experiências semelhantes.
De qualquer forma, quem sabe esta história sirva de alerta para algumas pessoas...
Bj, Cá * * *

Anônimo disse...

Na real, eu considero a realidade uma droga coletiva, portanto nem sou reacionário ao uso de psicotrópicos. Nem esse texto teve o propósito de alerta, está mais para um relato curioso de uma experiência irreal que por muito pouco não desembocou em trajédia real. Nunca usei e pretendo nunca usar alucinógenos, mas quem é a fim de jogar no corpo essa porcariada tem o mesmo direito de quem quer pular de triciclo por uma fileira de dez carros em chamas. Como diria nossos pais, tem louco pra tudo. Enfim, as recomendações estão aí, faz quem quer e depois que arque com as consequências por conta própria, porque nenhuma mãe merece ficar o resto da vida cuidando de um filho ou filha que nunca mais conseguiu voltar ao plano real. Também não se deve colocar em risco a integridade de terceiros. Os três manés da história poderiam ter sido atropelados ou até mesmo ter matado alguém na rua pensando que se tratava de um zumbi ou hell angel. Portando, quer se emboletar, vá para uma chácara e peça a ajuda de um co-piloto (alguém sóbrio e forçudo que possa evitar um eventual pulo seu de um penhasco pensando que é o super homem). De minha parte, continuo desconhecendo drogas melhores do que adrenalina, endorfina e seratonina. Eu produzo, eu consumo. Sem intermediários ou contra-indicações.
Beijo e espero que você nunca mais passe por algo assim, porque a melhor experiência existecial continua sendo viver.

Mario